Saúde e bem-estar

Politicamente correcto (*)

Ainda me lembro da primeira vez que disse a um líder/gestor de Enfermagem que a escassez de enfermeiros estava a provocar danos concretos nos doentes. Recordo como se fosse hoje a transformação que se seguiu: o estado aparentemente normal deu lugar a uma expressão de pânico e horror. – Nem pensar Senhor Enfermeiro. Não pode dizer isso, nunca pode dizer isso! Não pode dizer que por causa de haver menos enfermeiros por turno estão a acontecer mais úlceras de pressão!. Estavam a acontecer, mas não estava autorizado a fazer a ligação. Nem dessa vez, nem das vezes seguintes.

 

E de todas as vezes que ouvi isto, que assisti ou que outro colega me contou, comecei a encontrar um padrão. Um padrão que ganhou vida na minha cabeça hoje, hoje que li num dado jornal que a escassez de enfermeiros e péssimas condições de trabalho têm levado a que “a segurança dos doentes começa a estar em causa”. E não queria acreditar. Uma figura pública da Enfermagem, um líder da profissão, depois de ver tantas falhas em cuidados e dezenas de estudos que as comprovam, sai-se com um “começa a estar em causa”… E se começa é porque ainda não começou bem, é porque o problema não é muito grande, é porque está só a começar ou porque nem sequer existe, é porque não deve ter expressão suficiente.

 

Não nos enganemos. A escassez de enfermeiros em número e competências adequadas nos Serviços de Saúde está a matar portugueses. É um assassino silencioso, que tem vindo a roubar a vida a milhares de pessoas ao longo dos últimos anos. Não é de agora ou do ano passado. Já lá vão mais anos e parece que ninguém quer falar sobre o assunto. E o assunto, por mais delicado que seja, é este: menos enfermeiros com menos condições para trabalhar erram mais, não conseguem intervir a tempo, detetar o que seria detetável e matam mais. Ponto.

 

Na Enfermagem, parece que são poucos os que querem falar disto abertamente. Parece que esta “incidência da desgraça” é culpa dos próprios enfermeiros e que “se eu sinalizar estes acontecimentos, a culpa vai cair no nosso colo e vamos perder a confiança de todos. E Deus me livre de aparecer mal no retrato dos cuidados de saúde”. E se é compreensível que entidades reguladoras, instituições de saúde e governos queiram manter esta informação afastada do conhecimento público, estranho é que o silêncio seja proliferado por aqueles que sofrem essa mesma escassez. Estranho é que muitos daqueles que ocupam posições de destaque e de impacto decisório sejam, por vezes, exactamente aqueles que negam que isso esteja a acontecer. Como se fosse uma falha da sua gestão, um erro do seu ser ou do seu carácter, não conseguem lidar com a perda apercebida e entram em estado de negação total.

 

Alguns enfermeiros da prestação de cuidados não são excepção: “se não fôssemos nós [a trabalhar feitos escravos e com cada vez menos capacidade para o fazer], seria muito pior”. Muito pior? Pior do que já é? Do que já está? Porque é que ninguém fala do que se está a passar hoje? Será que o público tem a real percepção do impacto dos cuidados de Enfermagem – ou da sua escassez – na saúde individual e colectiva?

 

Assim, existem dois pontos a afirmar: o primeiro é que apesar de os enfermeiros serem os protagonistas, eles não são os culpados. Um sistema social e de organização do trabalho, com vista à crescente obtenção do lucro está a esmagar estes (e outros) profissionais de saúde e ameaça as bases da própria Enfermagem e a vida dos utentes. O segundo é que enquanto continuarmos com o discurso do politicamente correcto, menos condições vão ser dadas aos Enfermeiros para fazer Enfermagem (isto é, salvar vidas e melhorar os níveis de saúde e bem-estar das populações) e o problema agravar-se-á ainda mais, com custos económicos e sociais sem precedentes.

 

Não me venham com histórias: menos enfermeiros com mais trabalho não conseguem evitar quedas, úlceras de pressão e pneumonias por aspiração, não ensinam correctamente os utentes a preparar o período pós-alta hospitalar, não detectam estados críticos nem tampouco os revertem, não investem em formação e não estão preparados para lidar com a complexidade crescente dos cuidados de saúde a prestar. Não começou, nem está para começar. Já leva um grande avanço e pode ficar muito, muito pior. A quantas vidas humanas equivale uma boa reputação/aparência?

 

(*) Encontre mais reflexões sobre coisas tão importantes como a sua Saúde, os contributos dos Enfermeiros e como dar voz às suas ideias no Livro “Se a Enfermagem Falasse…”, disponível em www.comunicarenfermagem.com/publicacoes.html e emwww.facebook.com/seaenfermagemfalasse

 

Este artigo surge da colaboração entre a Comunidade de Saúde PortalEnf e o Livro “Se a Enfermagem Falasse…” cujo intuito é estimular a reflexão dos colegas sobre temas indispensáveis ao desenvolvimento da profissão e ao fortalecimento dos cuidados que prestamos diariamente aos utentes!

 

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