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Reportagem no Curry Cabral: “Os doentes são cada vez mais novos e chegam com doença mais grave” – Saúde Online

A azáfama toma conta de uma das alas adjacentes ao edifício principal do Hospital Curry Cabral, naquela que era, até aqui, a Unidade de Medicina Física e Reabilitação. Era mas já não é. Todos os doentes que lá estavam foram transferidos, num movimento de reconfiguração constante que se tem tornado assustadoramente habitual. O objetivo? Esvaziar o espaço, para, de seguida, o transformar em mais uma enfermaria para receber doentes Covid, com 16 camas.

Tem sido assim desde que a pandemia começou. O Curry Cabral reinventa-se a cada dia e está, agora, praticamente tomado pela Covid. Já ultrapassadas, largamente, as trezentas camas para estes doentes previstas na última fase do plano de contingência, da atividade normal já pouco resta. Sobram apenas 30 camas na unidade de cirurgia hepato-biliar e 24 na unidade de transplantes, que não pode parar. Está ainda a funcionar o serviço de Nefrologia, onde se fazem as hemodiálises, explica António Panarra, coordenador da Unidade da Medicina Covid 7.2, uma das várias enfermarias que tratam doentes Covid.

António Panarra, coordenador da Unidade da Medicina Covid 7.2

“Fora isto, todo o hospital está ocupado com doentes Covid”, explica o médico, que confessa que os profissionais estão “cansados, exaustos, fartos da pandemia”. “O maior desafio tem sido lidar com o crescimento do número de doentes, organizar as equipas [de profissionais] e torná-las equilibradas e garantir os melhores cuidados”, refere António Panarra. O especialista admite que “todos os invernos é preciso aumentar o número de camas”. Contudo, e para se ter uma ideia da dimensão do desafio, a resposta que está a ser dada pelo Curry Cabral “é mais do triplo da habitual nesta altura”.

Maria Inês Pereira é a enfermeira-chefe da mesma unidade. “Estamos cansados, ansiosos, angustiados, sempre com a expectativa de que vá chegar ao fim. Esta terceira vaga tem sido muito difícil de gerir, aumentou muito o nível de complexidade dos doentes. Os doentes são agora mais críticos, aos quais não estamos tão habituados a prestar cuidados. A exigência é maior”, sublinha.

“Fevereiro vai ser ainda um mês crítico”

O médico António Panarra recusa qualquer levantamento das medidas de confinamento antes do final do mês de março, sob pena de se registar um novo agravamento de todos os parâmetros. As escolas, diz, têm de permanecer fechadas.

Apesar de se ter registado uma diminuição de infeções nos últimos dias, a descida está a acontecer de forma mais lenta na região de Lisboa e Vale do Tejo, o que perspetiva um alívio ténue nos internamentos nas próximas semanas. “O número de novas infeções tem uma repercussão tardia no número de novos internamentos”, lembra o especialista. Por isso, espera-se que pressão sob o Hospital Curry Cabral se vá manter durante o mês de fevereiro em níveis altos. “Vai ser ainda um mês crítico”.

António Panarra mostra-se, por outro lado, preocupado com o adiamento das cirurgias consideradas não-urgentes – quatro enfermarias cirúrgicas estão agora paradas, e foram transformadas em enfermarias Covid.

O Hospital Curry Cabral tem mais de 300 pessoas internadas com Covid-19. Espera-se que a pressão desça mas de forma lenta

Visitamos uma delas, no quarto piso do edifício principal, com a ajuda do médico internista Rodrigo Leão. Naquele espaço estão 26 camas, todas ocupadas. Trabalham ali 22 enfermeiros e oito médicos.  Os circuitos de segurança são desinfetados constantemente. Registam-se 30 a 40 altas todos os dias no Curry Cabral e o mesmo número de admissões. É um ritmo frenético.

Pelo hospital ainda circulam trabalhadores externos, que fazem obras para ajustar as instalações à nova realidade. No dia em que o SaúdeOnline esteve no Curry Cabral (sexta-feira, dia 5) um dos espaços, antes um gabinete médico, estava a ser adaptado para se tornar num dormitório onde os médicos que estejam a fazer urgência interna possam descansar. Inicialmente, eram dois os especialistas com esta função mas, “com mais de 300 doentes internados, a equipa teve de ser aumentada”.

Foram também, por exemplo, colocadas portas na entrada de cada enfermaria para diminuir o risco de contaminação dos espaços exteriores. Há salas, onde antes se faziam consultas presenciais (nesta fase reduzidas ao mínimo indispensável) que são agora gabinetes de trabalho das equipas médicas.

Rodrigo Leão, médico internista: “Estamos a perder muita gente. E não é por falta de cuidados, é porque a doença é grave”

Rodrigo Leão, que começou a trabalhar no hospital em novembro, no antigo serviço de Ortopedia, que acabara de ser reconvertido para acolher doentes Covid, esforça-se por destacar o espírito de entreajuda entre os médicos. Habitualmente a cargo da Medicina Interna e Infecciologia, os doentes respiratórios – nesta fase, quase todos infetados com o SARS-CoV-2 – são agora tratados por especialistas de todas as áreas. “Temos colegas pneumologistas, gastroenterologistas, cardiologistas, cirurgiões, ortopedistas e dermatologistas, entre outras especialidades, que foram integrados nas nossas equipas [Covid]”.

 

“Os doentes são cada vez mais novos (a grande maioria está entre os 50 e 60 e poucos anos) e chegam com doença mais grave”

 

Antes de ingressar no Curry Cabral, o médico e também professor de Medicina trabalhava no Hospital dos Capuchos. Neste momento, as equipas que tratam os doentes Covid no Curry Cabral são compostas por especialistas de vários hospitais (Capuchos, São José, Santa Marta – tudo unidades que fazem parte do Centro Hospitalar de Lisboa Central). Todas as mãos são poucas perante a dimensão da pandemia. Rodrigo Leão garante que os médicos escalados para as enfermarias Covid fazem uma média de 60 horas semanais.

Rodrigo Leão explica que cada dia começa com uma revisão de todos os doentes internados, em que a equipa de cada unidade define um plano de ação antes de entrar nos quartos. “Podemos ter de recolher sangue, fazer uma gasimetria [exame que avalia os níveis de oxigénio e dióxido de carbono no sangue], começar ventilação não invasiva ou oxigenoterapia de alto fluxo. Tudo isto tem de ser feito antes de entrarmos nos quartos”, refere. A discussão acerca do estado dos doentes é feita novamente ao final do dia. A vigilância constante é fundamental no combate a uma doença que o médico internista classifica como “cínica”. “O doente pode estar muito bem num momento mas num espaço de horas descompensa e pode ter de ir para UCI”.

Médicos de várias especialidades discutem o estado clínico dos doentes

Para além disso, os doentes muitas vezes não se apercebem do seu estado real. “O doente pode dizer que não tem falta de ar e que está bem mas na verdade tem valores de oximetria [saturação de oxigénio no sangue] de 80% [um valor considerado baixo] e já lhe estamos a dar oxigénio suplementar”.

Rodrigo Leão recorda-se de um doente, admitido na urgência do Hospital de São José, que, antes de seguir para os cuidados intensivos, ligou à família para dar os códigos dos cartões multibanco e do cofre da empresa. “Esse doente sabia que ao entrar ali podia já não sair. Isso não é habitual, porque, geralmente, um doente que vai para os intensivos não tem este nível de consciência. Isto impressionou-me imenso”.

 

“É uma doença cínica. O doente pode estar muito bem, mas, num espaço de horas, descompensa e pode ter de ir para UCI”

 

Após o início dos sintomas de Covid-19, os primeiros cinco a dez dias são críticos. É nesse período que o doente pode “descompensar subitamente”. Por isso, o especialista explica que, por norma, a alta clínica nunca é dada antes de se completarem 10 dias desde o início dos sintomas, mesmo que a pessoa tenha condições de isolamento em casa. “Não damos altas precipitadas”, garante.

Tudo o que entra dentro dos quartos só pode sair se for diretamente colocado no lixo contaminado. Por isso, os profissionais partilham o estado clínico dos doentes uns com outros através dos vidros.

O tempo de internamento prolonga-se também no caso dos doentes assintomáticos, residentes, por exemplo, em lares e geralmente com outras doenças associadas. “Estes doentes não podem ser transferidos antes de terem um teste negativo ou então antes dos 20 dias de internamento, quando se considera que a probabilidade de transmitirem o vírus é quase nula”, explica Rodrigo Leão. Naqueles que necessitam de Cuidados Intensivos, os internamentos são, muitas vezes, superiores a um mês.

Por isso, e com a UCI sob intensa pressão, é preciso pesar bem a decisão sobre que doentes transferir para os cuidados mais diferenciados – uma tarefa que se tem revelado cada vez mais difícil. “Por não haver vagas em cuidados intensivos, muitos deles acabam por ficar internados em enfermaria”, admite a enfermeira Maria Inês Pereira. “É uma decisão difícil, que nos atormenta. Temos de perceber, de entre dois ou três doentes, qual é o doente que precisa de ir para os intensivos no imediato, aquele que pode esperar mais uma horas e o que pode esperar até ao dia seguinte. Muitas vezes estamos a protelar uma decisão inevitável e não sabemos se a decisão clínica foi a correta”, assume Rodrigo Leão.

 

“Temos cada vez mais doentes jovens a precisarem de cuidados intensivos”

 

Os vários profissionais ouvidos concordam que o perfil dos doentes mudou desde o início da pandemia. “Os doentes são agora mais críticos”, diz Maria Inês Pereira. “Os doentes são cada vez mais novos (a grande maioria está entre os 50 e 60 e poucos anos) e chegam com doença mais grave”, corrobora Rodrigo Leão. “Temos cada vez mais doentes jovens a precisarem de cuidados intensivos. São doentes, na sua maioria, saudáveis, que têm uma diabetes ligeira, uma hipertensão ligeira, que têm asma mas nunca fizeram nebulizadores ou qualquer terapêutica dirigida. É ainda inexplicável a razão pela qual estes doentes agravam tanto.”

A contribuir para isto, diz o especialista, estarão dois fatores: o aumento exponencial do número de infetados nesta nova vaga (que acabou por atingir doentes de todas as faixas etárias) e a disseminação da estirpe britânica, que, para além de ser mais contagiosa, parece causar doença mais grave.

Também aqui no Curry Cabral, tal como acontece na maioria dos hospitais do SNS, os médicos internos (ainda a completar a formação) representam uma parte importante da força de trabalho. “Muitos deles acabam por assumir responsabilidades quase como especialistas. Nenhum hospital sobrevive sem internos”, diz Rodrigo Leão, recusando qualquer fragilidade nos cuidados prestados aos doentes a esse nível. Os jovens médicos, garante, estão sempre acompanhados por médicos experientes, que os orientam.

Maria João Sousa, enfermeira-chefe no Hospital Curry Cabral

A falta de profissionais é um tema recorrente mas que perante o qual os profissionais no terreno já se resignaram. “Há falta de enfermeiros e assistentes operacionais. Era uma realidade já antes da pandemia, que se agravou. Há agora também muita baixas, de profissionais infetados”, diz a enfermeira-chefe de uma das antigas enfermarias cirúrgicas que o SaúdeOnline visitou. Maria João Sousa adianta que, dos 22 enfermeiros, cinco estão em casa, infetados. “O meu maior receio é o de que não consigamos fazer tudo o que está ao nosso alcance pelos doentes”, admite a enfermeira, que tem 34 anos de experiência. Rodrigo Leão explica que, no mercado, “não há enfermeiros nem médicos para contratar”.

 

“O meu maior receio é o de que não consigamos fazer tudo o que está ao nosso alcance pelos doentes”

O contacto com os internados também está reduzido. “É muito importante criar-se empatia entre o doente e o médico. Aqui é muito difícil fazer isso. Os doentes veem-nos diariamente e não nos reconhecem. Estamos todos equipados e somos todos iguais para eles. É difícil sossegá-los, também porque estão longe da família. O toque é muito importante, porque a mente ajuda o corpo na recuperação”, garante Rodrigo Leão.

Maria Inês Pereira, enfermeira-chefe da Unidade de Medicina Covid 7.2 : “Custa-me particularmente não poder entrar num quarto quando vejo um doente a morrer”

Os enfermeiros asseguram, através dos smartphones, videochamadas entre os doentes que estão conscientes e os respetivos familiares. Apesar de todas as visitas estarem suspensas, os médicos permitem que, nos os casos em que um doente esteja no fim de vida, um familiar se possa deslocar ao hospital para se despedir. “São casos em que a família não teve oportunidade de estar ao lado do doente. Sabemos que são traumas que podem ficar para o resto da vida, temos de ter isso em conta”.

Custa-me particularmente não poder entrar num quarto quando vejo um doente a morrer. Tem acontecido várias vezes”, assume a enfermeira Maria Inês Pereira, a quem as funções de chefia e coordenação de equipa roubam tempo ao contacto com os doentes. Por outro lado, diz: “É difícil dar alento à minha equipa, motivá-los”.

Aos doentes, explica o médico Rodrigo Leão, é administrado remdesivir (um antiviral que tem levantado dúvidas, por não serem completamente claros os benefícios para o doente) mas, sobretudo, dexametasona, um corticoide, este sim com “estudos que comprovam a diminuição da mortalidade”, e que evita que se desenvolva a chamada tempestade de citocinas ou tempestade inflamatória, que “descompensa o doente” e que leva à necessidade de ventilação invasiva. “Estamos a perder muita gente. E não é por falta de cuidados, é porque a doença é grave”.

No que diz respeito à vacinação, mais de cinco dos sete mil trabalhadores do Centro Hospitalar de Lisboa Central já tomaram pelo menos uma dose da vacina. Os profissionais que estiveram infetados há menos de 90 dias têm de esperar para poderem ser inoculados. Rodrigo Leão conta que teve mialgias e febre depois de levar a segunda dose, o que, diz, é positivo, porque significa que vacina “fez efeito”.

Fonte: Saúde Online

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