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ARS de Lisboa e Vale do Tejo quer que médicos de família devolvam dinheiro recebido indevidamente

São milhões de euros pagos indevidamente que um relatório elaborado pela ARS de Lisboa e Vale do Tejo defende que devem ser devolvidos. Entretanto, no Congresso da Associação Nacional de USF (USF-NA), que decorreu nos últimos dias, Marta Temido, a Ministra da Saúde afirmou que das 40 unidades com parecer positivo para transitarem para o modelo B – onde os médicos e demais pessoal recebem incentivos remuneratórios por trabalho a mais – apenas 20 transitarão. “Não há dinheiro para mais”, disse a ministra. No caso, 7 milhões de euros, de acordo com os cálculos da governante. A “Bazuca financeira” com os seus biliões de euros vai ser utilizada para melhorar equipamentos. Incentivos aos profissionais, nada. É o fim da Reforma dos CSP, garantem os profissionais no terreno.

Aqui há dias, o nosso jornal publicou um artigo de opinião assinado pelo Dr. António Alvim, Médico de Família na USF Rodrigues Miguéis, uma unidade de saúde familiar (USF) do modelo B – em que a retribuição é sensível ao desempenho – onde o autor dava conta da sua perceção de que a reforma dos cuidados de saúde primários se estava a “desmoronar”.

Dada a tecnicidade colocada na peça, muitos dos nossos leitores não compreenderam exatamente o que se estava a passar, o que é natural. Trata-se de um modelo de organização dos centros de saúde revolucionário, único na função pública, com muitas nuances e muitos mais pressupostos de funcionamento.

Hoje, tentaremos explicar numa linguagem mais acessível o que se está a passar e o que motivou o “desabafo” do autor.

Para isso, há que começar pelo princípio, que no caso é explicar o que é isto das USF, que vieram “aparentemente substituir os centros de saúde como os conhecíamos até 2006.

Em 2005, era Ministro da Saúde o Professor Correia de Campos, teve início uma reforma, há muito exigida pelos profissionais – dos CSP.

Pretendia-se dar mais autonomia aos profissionais, designadamente na organização do trabalho.

O plano de reforma previa:

  • Descentralizar a gestão
  • Gestão por objetivos (ganhos em saúde), contratualização
  • Equipas multiprofissionais (Unidades Operativas Funcionais)
  • Hierarquia e lideranças técnicas
  • Autonomia técnica, administrativa e financeira
  • Incentivos ao aumento voluntário de lista até mais 350 utentes, na forma de suplementos (Unidades de Contratualização correspondentes a horas suplementares).
  • Incentivos financeiros pelo desempenho em algumas áreas a pagar a cada profissional.
  • Incentivos para a instituição pelo cumprimento das metas contratualizadas.

Foram propostos vários modelos de Unidades, para suprir as necessidades de saúde das populações abrangidas pelos Agrupamentos de Centros de Saúde, também criados no âmbito da Reforma.

São eles:

UCC – Unidade de Cuidados na Comunidade.

UCS – Unidade de Cuidados de Saúde (equipas prestadoras de cuidados de saúde não organizadas em USF).

URAP – Unidade de Recursos Assistenciais Partilhados.

USF – Unidade de Saúde Familiar.

USP – Unidade de Saúde Pública.

A reforma proposta não foi pacífica. Muitos duvidavam que pudesse ser realizada e até que algumas das medidas anunciadas poderiam ser ilegais. O movimento anti reforma, liderado principalmente pelo Sindicato Independente dos Médicos procurou, de todas as formas impedir o seu avanço…. Sem sucesso.

Os médicos queriam mesmo alterar o modelo de funcionamento dos centros de saúde, um desejo que se refletia, muito particularmente nas USF.

Destas, foram consagrados na Lei, três modelos distintos:

Modelo A) – Com autonomia organizacional mas sem incentivos remuneratórios;

Modelo B) – Com autonomia organizacional e uma carteira suplementar de serviços, remunerados de forma autónoma;

Modelo C) – USF geridas por entidades privadas, do setor social, com contratualização autónoma (estas nunca chegaram a sair do papel).

Diga-se que não obstante os incentivos oferecidos no modelo B fossem muito apelativos, numa fase inicial, a simples possibilidade de se poder trabalhar num modelo de auto organização, multidisciplinar, foi o bastante para que centenas de médicos avançassem com projetos para o modelo A.

Mais tarde, em Setembro de 2006 surgiriam as primeiras 4 USF de modelo B, modelo em que hoje se encontram 257 das unidades USF.

Nestas unidades, como se referiu, os profissionais, para além do “pacote básico” de serviços, igual ao das USF de modelo A, poderiam contratar carteiras adicionais de serviços, “pagas à peça”.

Cada médico passaria a ter uma lista padrão de 1550 utentes (correspondente ao vencimento base de 35 semanais com exclusividade). Em complemento, poderiam contratar “pacotes” de utentes de 55 Unidades Ponderadas (os utentes são contabilizados em função de diferentes fatores, como a idade). Por cada “pacote”, até ao máximo de 9, corresponderia o acréscimo de uma hora de trabalho até a um limite de 9 horas a mais. Cada hora paga a 130 Euros. Mais, as primeiras 6 horas, como estimulo ao aumento da lista, são pagas com um factor de 1.8, ficando cada em 234 € mensais.

Mas há mais, muito mais… Além do aumento da lista os médicos em Modelo B ganham ainda pelas atividades realizadas: Seguimento de Diabéticos e de Hipertensos, consultas de vigilância em Planeamento Familiar, Saúde Materna e Saúde Infantil. Estas atividades também são convertidas em Unidades e cada 55 Unidades  corresponde a um incentivo remuneratório correspondente ao valor de 1 hora chamado de Unidade Contratual (UC) por Atividades Especificas. As UCs das Atividades Específicas somam-se às Unidades Contractuais referentes ao aumento da lista, sendo pagas pelo mesmo valor. O conjunto de UC pagas tem como teto as 20 UC.

Os domicílios também são pagos, 30 € cada com um limite de 20 por mês e no relatório da IGAS são considerados como a fazer fora do horário, uma vez que pagos à peça;  e, nos locais -aonde exista alargamento de cobertura, a partir das 20 e aos fins-de-semana o pagamento é feito pelo valor hora de 180 € e de 230 €, respetivamente. Estes valores são pagos ao grupo pelo que têm que ser divididos pelo número de médicos da USF. Contudo esta cobertura ao fim de semana também terá sido recusada pelas Administrações, à semelhança do que aconteceu com as Carteiras Adicionais

Finalmente, os orientadores de internos do internato complementar de Medicina Familiar têm uma remuneração própria correspondente a 4 UC=4×130 €. Ou seja, 520 €, enquanto tiverem um interno, e os coordenadores da USF são recompensados com 7 UC (910 €).

Contas feitas, um médico de família em USF de modelo B, recebe “brutos”, cerca de 6 a 7 000 €, podendo os Coordenadores chegar aos 8000 €. O mesmo médico, em modelo A, recebe menos de 3000 €.

Recibo de ordenado simulado de um médico em modelo B.

Explicado o modelo, voltemo-nos para a situação atual e para o escândalo gerado por um documento elaborado pela Inspeção Geral das Atividades em Saúde, a que o nosso jornal conseguiu aceder em exclusivo.

Em 2018 e após algumas notícias controversas, designadamente uma publicada pelo nosso jornal, dando conta de que os médicos das USF de modelo B estavam a receber indevidamente por UC de aumento de lista de utentes, por não ajustarem os horários a esse aumento, o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde – À época Fernando Araújo – solicitou às Administrações Regionais de Saúde (ARS) que procedessem “a auditorias a todas as USF de modelo B que se encontrem no âmbito da Vossa área de atuação visando aferir do cumprimento das disposições legais constantes” na lei “em matéria de horários de trabalho da carreira médica nas USF de modelo B”, exigindo que as auditorias fossem concluídas até 30 de agosto de 2018, e fossem reportados os resultados ao Gabinete do governante.

Concluídas as auditorias dentro dos prazos fixados por Fernando Araújo, os relatórios foram enviados pelo governante para a IGAS, para que esta entidade se pronunciasse sobre os resultados.

A leitura do relatório (link disponível no final deste texto), é de deixar boquiaberto o mais prevenido.

A principal conclusão é a de que as USF de modelo B, na sua maioria, têm contratualizado aumento de listas de utentes sem que tal aumente se repercute no horário de trabalho dos médicos. Dito de outro modo, com mais cerca de 350 utentes tipo nas suas listas, a maioria dos médicos destas unidades não trabalham mais uma hora para compensar o acréscimo. O mesmo acontece com os outros grupos profissionais.

Vejamos o que reportaram as ARS:

ARS Norte

Com 18 agrupamentos de centros de saúde, 125 USF, 873 médicos 837 enfermeiros e 649 assistentes técnicos, a ARS Norte conclui no seu relatório de auditoria que os trabalhadores com carga horária de 35 horas semanais não cumprem o disposto na Lei sobre cumprimento de horários.

Dos 873 médicos, somente 482 apresentavam uma carga horária semanal superior a 35 horas “e mesmo destes, <apenas 24 cumpriram a relação de que para cada UC equivale um acréscimo de uma hora por semana, correspondendo a apenas 2.7% do total dos médicos>

 A mesma situação verificou-se com os demais grupos profissionais. “Dos 837 enfermeiros, apenas 15 cumpriram a relação de que para cada UC equivale um acréscimo de uma hora por semana”. Apenas 8 enfermeiros ultrapassaram o valor mensal definido em 1 hora.

E dos 230 assistentes técnicos, apenas 10 cumpriram essa relação (1.5%)

 ARS Centro

 Na ARS Centro, foi entendido que o aumento de uma hora por UC não era o correto, mas sim 33.3 minutos, como defendeu o sim, para que no total, não fossem ultrapassadas o limite de 40 horas semanais definidos por Lei.

Pese o encurtar de tempo, “muitos profissionais apresentaram resultados inferiores ao que deveria ser o somatório das horas correspondentes ao horário base de 35 horas semanais acrescidas do incremento de UC por aumento da lista de utentes, sem que para tal apresentem evidências de ausências justificativas”, lê-se no documento, onde também se afirma que “os horários de trabalho não refletem os incrementos de UC por aumento de lista de utentes, com exceção da USF Santa Joana, embora esse incremento não se encontre destrinçado do restante horário de trabalho.

A auditoria constatou ainda entre outras irregularidades que “existem horários aprovados de 35 horas cuja distribuição pelos dias da semana perfaz aquela carga horária”.

ARS de Lisboa e Vale do Tejo

Na maior ARS do País, as auditorias ordenadas por Fernando Araújo concluíram que “No que respeita a mais de metade dos médicos, verificou-se que os tempos de trabalho previstos (…) eram iguais ou inferiores ao horário base, sem contemplar, assim, quaisquer incrementos ajustados a UC e, como tal, sem direito a pagamento de UC por aumento de lista”.

Lê-se ainda no documento que “Apenas cinco médicos (quatro em Maio de 2017 e um em janeiro de 2018) não evidenciavam o pagamento de UC por UP”. E mais: “todos os médicos tiveram incrementos remuneratórios associados a UC por UP, a maioria dos quais (…) sem evidências da realização do correspondente tempo de trabalho”.

Em conclusão, a ARS diz que “Conclui-se, assim, que foram pagas remunerações por tempo de trabalho não prestado pelo que deve ser efetuada a devida reposição”.

Tanto quanto o nosso jornal conseguiu apurar, até ao momento ninguém repôs um tostão que fosse. Nem ninguém o pediu…

O mesmo nas restantes regiões.

E, mesmo depois de uma segunda oportunidade dada no despacho 5803-2019 , tudo continua na mesma com pelo menos 2/3 dos profissionais a cumprirem apenas horários de 35 horas ou pouco mais. E convém lembrar que, desde de 2012, os Médicos de Família nas UCSP e USF A, com listas de utentes semelhantes às listas máximas das USF B, e que, como vimos, recebem menos de metade, têm de cumprir horários de 40 horas.

MMM/AA /HN

Relatório IGAS

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