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A medicina ainda tem um longo caminho até levar a dor feminina a sério

Patricia de Melo Moreira / AFP

Muitos dos avanços na medicina tiveram apenas metade da população em conta. Para além da falta de representação das mulheres nos estudos médicos, a dor e os relatos das pacientes são muitas vezes desvalorizados nas urgências.

Já dizia James Brown que este é um mundo para homens, e a própria medicina não escapa a esta realidade. Depois de se comprovar que objectos quotidianos como carros são feitos com o corpo dos homens em mente e como isso pode levar a mais mortes de mulheres em acidentes – há estudos que mostram que ainda há um longo caminho a percorrer até que a dor feminina seja levada a sério pelos médicos.

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O caminho longo e doloroso até ao diagnóstico da endometriose, a conhecida doença da mulher moderna, é uma das maiores provas disto. Multiplicam-se os testemunhos de mulheres que viram as suas queixas desvalorizadas e ignoradas durante anos pelos médicos, até que o diagnóstico veio finalmente comprovar que não estavam só a ser dramáticas e a exagerar.

“Quando fui diagnosticada com endometriose aos 23 anos, não sabia o suficiente para perguntar as questões certas. Assumi que o meu ginecologista tinha todas as respostas e ouvi com cuidado às suas explicações consideradas. Achei que sabia tudo. Ou que pelo menos ele sabia tudo”, começa o testemunho de Gabrielle Jackson no The Guardian.

Depois de mais de uma década a sentir-se fraca e a desvalorizar os sintomas como se fosse hipocondríaca, Gabrielle começou a perguntar-se sobre como havia tão grande falta de conhecimento sobre uma doença que já existe nos textos médicos mais de um século.

“Um século de diagnósticos e a ciência médica continua sem ter ideia do que causa a endometriose ou como funciona, e não estamos mais perto de uma cura. Como é que isto pode possivelmente ser? E apesar de haver muitos médicos no ramo que fazem uma enorme diferença nas vidas das pessoas como endometriose, há muitos mais continuam ignorantes sobre a doença, promovem mitos sobre as suas curas e tratam as pessoas com a doença como se fossem histéricas“, remata.

A experiência de Gabrielle fez com que se interessasse mais por outros casos médicos onde as queixas das mulheres são desvalorizadas como sendo exageradas, que compilou depois no livro Pain and Prejudice — Dor e Preconceito.

A jornalista concluiu que as mulheres esperam mais tempo para serem receitadas medicamentos para a dor, para serem diagnosticadas com cancro e que têm uma probabilidade maior de terem os seus sintomas físicos ser desvalorizados como sendo só algo na cabeça delas, tal como comprovou um estudo de 2021.

O diagnóstico tardio de doenças cardíacas e o maior risco de se ficar deficiente depois de um AVC também afectam mais as mulheres, que tendem a sofrer de condições mais ignoradas na comunidade médica.

O mais chocante para a autora é que “há muitas mulheres que vivem em dor constante e que não sabem que isso não é normal e que não têm de viver assim”, citando dez doenças que causam dor crónica que afectam predominantemente mulheres e que têm sintomas semelhantes — mas que geralmente têm também diagnósticos tardios.

“Por que é que as mulheres continuam a ser tratadas como histéricas, demasiado emocionais, ansiosas e testemunhas não confiáveis do seu próprio bem-estar?”, questiona Gabrielle Jackson.

Numa peça para a The Atlantic onde detalha uma má experiência com a esposa nas urgências, o jornalista Joe Fassler faz perguntas semelhantes. Era uma manhã normal de quarta-feira, quando Rachel, a mulher de Joe, soltou um grito e caiu com dores na casa-de-banho.

Quando a equipa de emergência chegou ao apartamento, perguntaram-lhe de 0 a 10 qual era o nível de dor que sentia, tendo a geralmente pouco sensível à dor Rachel respondido com um “11”.

Joe relata que tentou várias vezes alertar os médicos e enfermeiros nas urgências de que a sua esposa tinha de ser atendida rapidamente. “Ela tem de esperar pela vez dela”, respondeu uma enfermeira. O jornalista recorda as reacções que “foram entre desdenhosas e paternalistas”. “Só está a sentir uma dorzinha, querida“, terá dito uma enfermeira.

Tendo sigo inicialmente indicada como um caso de pedra dos rins, aquilo que se passava na verdade é que quisto num dos ovários de Rachel tinha crescido sem ser detectado até ser tão grande que começou a torcer a sua trompa de Falópio — uma condição chamada torção anexial que pode levar até à falência dos órgãos e até ser fatal, sendo uma resposta rápida essencial para se evitar o pior.

Apesar do inchaço no ovário poder ter sido facilmente diagnosticado através da pele por um médico mais cuidadoso, Rachel continuou a sofrer num estado potencialmente mortal. “Estas urgências em particular, como muitas nos EUA, não tinham um ginecologista de serviço. E todos os encolher de ombros das enfermeiras pareciam dizer “as mulheres choram – vamos fazer o quê?”, relata o jornalista.

Joe cita também um estudo que mostra que nos EUA os homens esperam uma média de 49 minutos antes de receberem um analgésico para dores abdominais aguas, enquanto que as mulheres esperam em média 65 minutos. Rachel esperou algures entre 90 minutos e duas horas.

“As cicatrizes físicas da Rachel estão a sarar, e ela pode fazer as corridas longas que adora, mas ainda está a lidar com as consequências psicológicas — aquilo que ela chama “o trauma de não ser vista“. Ela tem pesadelos, algumas noites”, remata o jornalista

A escritora Leslie Jamison, no seu livro The Empathy Exams, discutiu o que tinha acontecido a uma das suas melhores amigas meses depois do seu ensaio sobre a dor feminina ter sido publicado. Essa amiga era Rachel.

“Esse caso foi uma encarnação profundamente pessoal e perturbadora do que está em risco. Não só do lado dos médicos, onde a dor feminina pode ser entendida como exagerada, mas do lado da própria mulher: a minha amiga tem estado a pensar nos seus próprios medos de ser entendida como melodramática“, escreve Jamison.

A desigualdade na dor

Os casos de Gabrielle e Rachel estão longe de ser os únicos. O estudo The Girl Who Cried Pain — um trocadilho sobre a história de The Boy Who Cried Wolf, conhecida como Pedro e o Lobo em Portugal — publicado em 2001, explica o fenómeno Síndrome de Yentl, que se refere à diferença de tratamento nos casos de ataque cardíaco entre homens e mulheres.

É mais provável que as mulheres sejam tratadas “de forma menos agressiva nos seus primeiros encontros com o sistema de saúde até provarem que estão tão doentes como os pacientes masculinos“, concluiu o estudo.

Outras investigações concluíram também que as mulheres têm uma menor probabilidade de receber sedativos do que os homens e que apenas metade das mulheres que receberam cirurgia de revascularização do miocárdio foram receitadas analgésicos em comparação com homens que tinham feito a mesma cirurgia.

Estas diferenças do tratamento no sistema de saúde podem ter consequências sérias e até fataos. Um estudo de 2000 concluiu que as mulheres têm uma probabilidade quatro vezes maior em relação aos homens de receberem diagnósticos errados e até receber alta enquanto estão a sofrer um ataque cardíaco.

Em 2018, um caso de uma jovem francesa de 22 anos também fez manchetes mundiais. A mulher fez uma chamada de emergência por estar a sentir uma dor abdominar tão aguda que sentiu “que ia morrer”. “Vai definitivamente morrer um dia, como todos nós”, terá respondido o operador. Depois de cinco horas, a mulher foi para o hospital, onde acabou por entrar em falência de órgãos e não resistir.

Já 70% das pessoas que sofrem de dor crónica são mulheres, mas mesmo assim, 80% dos estudos sobre dor são feitos em ratos machos ou em homens. Um dos poucos estudos que analisou as diferenças de género na percepção da dor até concluiu que as mulheres tendem a sentir dores mais intensas e mais frequentes do que os homens.

“Sabemos menos sobre a biologia feminina”

Mas, afinal, o que explica estas diferenças no tratamento entre homens e mulheres? Para a médica Janine Austin Clayton, a resposta é simples: “Sabemos literalmente menos sobre todos os aspectos da biologia feminina em comparação com a biologia masculina”.

Tradicionalmente, muitos investigadores preferem trabalhar com animais de laboratório machos, preocupados com os efeitos dos ciclos hormonais das mulheres nos resultados dos testes. O problema é que, ao não estudarem os efeitos nas mulheres, não há maneira de saber qual o impacto que estas podem sofrer.

K.C. Brennan, professor de neurologia na Universidade do Utah, explica ao New York Times que já se focou em perceber as diferenças nos sexos na sua pesquisa nas enxaquecas — mas incluir ratos fêmea aumenta os custos, já que a equipa tem de fazer experiências extra para ter em conta os ciclos de estro.

“As diferenças entre os sexos são o elefante na sala. Temos de ter animais machos e fêmeas, porque algo que se manifeste de forma diferente nos machos e nas fêmeas pode ser uma pista sobre como uma doença funciona“, esclarece.

Para Gabrielle Jackson, a resposta já é o legado cultural que desde o início da medicina, tem tratado as mulheres como inferiores aos homens, desde a vilificação do útero, que Platão descreveu como “um animal voraz dentro do corpo feminino que lhe sugava a força para viver”, até ao bicho-papão que são hormonas.

“Todo o tipo de teorias biológicas têm sido usadas para justificar a subordinação das mulheres aos homens. No centro da maioria delas está a ideia de que os processos reprodutores das mulheres — a menstruação, a gravidez, a amamentação e a menopausa — consomem tanta energia que a atenção dada a qualquer outro objectivo simplesmente lhes tiraria a feminilidade e a concretização do seu propósito final: ser boas esposas e mães”, escreve a jornalista.

O que piora ainda mais as disparidades é que os estudantes de medicina nunca são informados dela. “Não se fala nas escolas de medicina que quase tudo o que sabemos sobre a biologia humana vem de estudos dos homens. E talvez, só talvez, as mulheres que enchem as salas de espera — as mulheres que eles não podem ajudar — não estão lá porque são histéricas ou a inventar ou querem atenção, mas porque estão doentes, a sofrer e a medicina não tem respostas para elas“, conclui Gabrielle Jackson.

  Adriana Peixoto, ZAP //

Fonte: ZAP

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