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Operação Nariz Vermelho: 20 anos a aliviar a dor de crianças hospitalizadas

A pandemia desafiou a Operação Nariz Vermelho (ONV), mas não a travou. Impedidos de entrar nos hospitais, os Doutores Palhaços deram força às crianças, às famílias e aos profissionais de saúde a partir de casa, aparecendo em tablets presos em suportes de soro que eram transportados pelos profissionais de saúde. Para além do Palhaços na Linha, tiveram a TV ONV, no seu canal de Youtube, com dois vídeos por dia. Agora estão de volta aos 17 hospitais, que reúnem mais de 100 serviços, que os palhaços visitam em duplas todas as semanas. Estes 25 artistas, com formação na arte do palhaço e para trabalhar em ambiente hospitalar, ajudam as crianças a tolerar a dor, colaborar nos tratamentos e a esquecer a dura realidade que enfrentam. “Se pensarmos sobre a criança hospitalizada, a partir do momento em que entra no hospital, perde direitos. Perde a escola, perde os amigos, perde a força, perde a vitalidade para brincar. Ela está ali a perder e deixa de poder comandar a vida. Eu acho que o que o Doutor Palhaço dá é esse empoderamento à criança”, explicou-nos a presidente da ONV, Luiza Teixeira de Freitas. Este ano, a organização celebra o seu vigésimo aniversário e quer agradecer a todos os que a apoiam.

HealthNews- A pandemia teve um grande impacto no vosso trabalho? Como é que se adaptaram à realidade pandémica?

Luiza Teixeira de Freitas (LTF)- A pandemia teve um impacto tanto a nível individual, na vida de cada um, quanto ao nível institucional, das empresas. Todas as pessoas foram afetadas pela pandemia. A Operação Nariz Vermelho reinventou-se em tempo recorde. Nós trabalhávamos no sítio onde o risco era maior, então, de repente, não se pode ir ao hospital, o país está em pânico, o mundo está em pânico, somos mandados para casa como toda a gente, e como é que uma pessoa que trabalha com o presencial, com os olhos nos olhos, vai agora conseguir fazer isto em remoto. Mas foi incrível porque em uma semana, na fatídica semana de março de 2020, a equipa tinha um plano para apresentar. No primeiro lockdown, a Operação Nariz Vermelho criou a TV ONV. Os Doutores Palhaços faziam vídeos em casa que eram lançados duas vezes por dia no nosso canal de Youtube, às 10h e às 18h, e estavam disponíveis para as crianças hospitalizadas, mas também para qualquer pessoa que quisesse ver. Ou seja, acabou por ser um projeto que beneficiou também crianças que estavam isoladas em casa. Os meus filhos também perguntavam pelos próximos vídeos.

Para os artistas foi todo um novo mundo. Primeiro sentiram medo por não saberem o que lhes ia acontecer, mas, de repente, perceberam: “Espera aí, agora o nosso universo artístico não é só a nossa bata e as nossos bolsas, agora temos a nossa casa toda”. Então, de repente, temos Doutores Palhaços a voar, debaixo do mar, na praia, porque tudo era fruto da imaginação, do que eles podiam criar naquele cenário.  Faziam vídeos em dupla, cada um em sua casa. Isso foi o primeiro momento. Lançámos logo o canal três semanas ou um mês depois de o lockdown começar e estivemos no ar muito tempo. Quando o lockdown terminou, tivemos um hospital dos 17 onde trabalhamos que disse: “Voltem já. Vocês fazem parte, venham”. Em todos os outros onde não fomos autorizados a voltar, nós já tínhamos outro projeto na calha, que foi o Palhaços na Linha, também criado pela equipa – uns tablets pendurados num suporte de soro; dois palhaços, cada um na sua casa, entravam em videochamada com o hospital. O tablet era carregado pelos profissionais de saúde, para irmos ao encontro de cada criança. Aos poucos tínhamos este projeto a acontecer em quase todos os hospitais onde trabalhávamos. Quase todos os hospitais abraçaram o projeto. Também foi muito bonito e emocionante ver como se estreitaram os laços, que já eram ótimos, entre a nossa organização e os profissionais de saúde. Nós precisávamos deles mais do que nunca. Eles eram as nossas pernas. Este mês, finalmente, estamos nos 17. Em dezembro, ainda estávamos com alguns hospitais em PNL (Palhaços na Linha).

HN- Este foi o maior desafio que enfrentaram em 20 anos?

LTF- Sinceramente, eu acho que não. Esta é uma organização muito estável, porque uma organização que em uma semana arranja uma solução, que em um mês arranja outra e que não coloca nem um dos seus trabalhadores em lay-off, que não perde os fundos que angaria, eu acho que é de louvar. Eu acho que o momento mais difícil da história da organização foi quando morreu a fundadora. Eu na altura não estava na direção, porque eu só estou na direção há dois anos, mas sei que foi muito complicado. Há pessoas que não dá mesmo para substituir, temos de ir arranjar outra forma de trabalhar, e eu acho que foi isso que se passou quando a organização perdeu a fundadora.

HN- Agora que estão de regresso aos hospitais, mantêm as abordagens que tinham há dois anos ou a pandemia trouxe-vos novas formas de trabalhar?

LTF- Eu acho que o trabalho depende muito dos artistas que lá estão – são 25 doutores palhaços, cada um é diferente – e também de cada hospital, das regras e preocupações de cada hospital. Nós estamos a trabalhar muito de acordo com o diálogo que temos com cada sítio. Cada hospital pede uma coisa diferente, ou tem algum requerimento ou uma atitude diferente. Nós falamos em 17 hospitais, mas visitamos mais de 100 serviços, ou seja, claro que há adaptações a fazer. Agora as diretivas são muito mais rígidas, e nós também estamos com muito mais cuidado, para respeitar este medo que se vive. Por exemplo, os Doutores Palhaços nunca tinham trabalhado de máscara. Perderam metade do rosto, sendo que o sorriso é das maiores ferramentas do trabalho. Temos que aprender a trabalhar só com os olhos, a não tocar e a não chegar perto. Estamos a viver uma fase de medo. A sociedade está com medo, estamos com medo uns dos outros. Temos que trabalhar nisto, temos que voltar a conseguir abraçar-nos e a estar juntos sem medo, mas realmente o hospital é um lugar ainda mais sensível. Nós temos mesmo muito cuidado. Estamos a seguir as regras à risca.

HN- Estamos a falar de artistas preparados para trabalhar em ambiente hospitalar?

LTF- Sim. Os Doutores Palhaços são artistas especializados para estar em ambiente hospitalar. São formados na arte do palhaço ou em outros tipos de artes performáticas, mas sempre com a experiência do clown. Agora estamos no meio de uma fase de candidaturas de novos palhaços, estamos a contratar novos palhaços para a equipa.

Se calhar [os Doutores Palhaços] antes ficavam um mês em workshop nos hospitais, agora estamos a readaptar e, se calhar, vão só duas manhãs. Mas há sempre uma fase de aprendizado. Um Doutor Palhaço nunca entra para a Operação Nariz Vermelho e vai diretamente para o hospital e começa a fazer o seu trabalho. Há uma fase em que ele é acompanhado pelo diretor artístico, por um colega, para aprender a estar naquele ambiente. Com a pandemia, tivemos que deixar de fazer muita coisa, muita formação. Agora, claro, a ideia é retomar. Além disso, os Doutores Palhaços são seguidos por uma psicóloga. É tudo muito delicado e muito cuidado. Nós temos muito cuidado com a saúde mental da organização, que é muito importante. Fala-se muito, depois desta pandemia, de saúde mental, e eu acho que isso é fundamental para pessoas que estão a trabalhar dentro do ambiente hospitalar.

Por mais que se diga, e é verdade, que fazemos parte da equipa, o nosso trabalho não tem um fim terapêutico, supostamente, mas acaba por auxiliar os fins terapêuticos das equipas. Isto está provado nos estudos que temos feito. Temos uma equipa de investigação que trabalha com estudantes de todo o país, temos protocolos com universidades.

Nós vamos ao hospital uma ou duas vezes por semana, dependendo do hospital e dos palhaços. A relação que existe entre o Doutor Palhaço e a criança ou os pais é muito intensa. Os Doutores Palhaços não veem a doença. Eles trabalham o lado saudável da criança. Eles vão à procura de onde é que não está a dor. Porque, se pensarmos sobre a criança hospitalizada, a partir do momento em que entra no hospital, perde direitos. Perde a escola, perde os amigos, perde a força, perde a vitalidade para brincar. Ela está ali a perder e deixa de poder comandar a vida. Eu acho que o que o Doutor Palhaço dá é esse empoderamento à criança. “Olha nós estamos aqui e quem manda és tu. Tu mandas em nós.”

O Doutor Palhaço trabalha com o improviso, mas claro que há formações para que seja um bom improviso. São duplas que ficam seis meses sempre no mesmo hospital, para criar vínculos. O mais importante é esse empoderamento. Quando o Doutor Palhaço entra na sala, há um momento, se calhar nem sempre com palavras, mas de “posso entrar”, “eu sou bem-vindo aqui ou não”. Se a criança às vezes não quer, nós respeitamos, ou tentamos de outra forma e, se continuar a não querer, nós vamos embora. Ou seja, a criança tem o poder de escolher se quer ou não brincar com aquele palhaço, se quer ou não rir, e num rol de coisas que ela perde, nós estamos a dar-lhe uma que ela ganha, porque ela é que escolhe.

HN- Quais os principais resultados do estudo que deu origem ao livro “Rir é o Melhor Remédio?”, publicado em 2016?

LTF- Por exemplo, 86% das crianças colaboram melhor com os tratamentos depois do contacto com os Doutores Palhaços. Isto é também visível no trabalho diário. Nos hospitais onde trabalhamos há muito tempo, muitas vezes somos chamados para ajudar a relaxar as crianças durante os tratamentos. Há um vídeo muito bonito de um miúdo. Estão a fazer imensas coisas no braço dele e ele está a olhar para os palhaços e nem sabe o que é que lhe está a acontecer. Isso é incrível.

A outra percentagem é: 84% toleram mais a dor. Nós temos um projeto pioneiro, que é a única coisa que ainda não voltou, em que nós acompanhamos as crianças no bloco operatório. Temos este projeto no Dona Estefânia e até queríamos abrir para outros hospitais. O Doutor Palhaço, desde o momento em que a criança deixa os pais até ao momento em que começa a cirurgia, acompanha a criança, claro que numa intervenção muito mais calma. O Doutor Palhaço toca uma música ou conversa calmamente com a criança. Quando a criança adormece, o Doutor Palhaço está ao lado.

E o último número que tenho aqui é: 93% esquecem-se, por momentos, de que estão no hospital. Isto é o fundamental, a questão do direito, de poder, por momentos, não sofrer e não estar ali, estar num sítio melhor.

Há números também muito interessantes que têm a ver com a relação com os profissionais de saúde. Uma enfermeira disse-me esta semana que quem sentiu mais saudades nossas foram os profissionais de saúde, porque as crianças vão saindo, embora haja crianças que ficam internadas muito tempo. Aliás, havia crianças que só nos conheciam no tablet. Nós até fizemos um vídeo de uma criança a assistir no tablet e, depois, os doutores palhaços aparecem “de verdade”. Foi quase como se o cartoon saísse da tela.

Os profissionais de saúde sentiram mesmo falta. Eles estão ávidos de algum tipo de normalidade. O hospital estava cheio de projetos. O nosso é um projeto muito presente e que tem uma aceitação muito grande. Nós somos completamente abraçados por todos os hospitais onde estamos. Mas há imensos outros projetos nos hospitais que deixaram de existir. É muito difícil. Eu fico a pensar na quantidade de projetos que ainda não conseguiram voltar.

HN- Como é que vão celebrar o vosso vigésimo aniversário?

LTF- Espero mesmo que a pandemia dê tréguas, para nós podermos celebrar, porque já vamos em fevereiro e ainda não conseguimos começar as celebrações. A ONV faz 20 anos a meio do ano, a 4 de junho, muito perto do Dia da Criança e do Dia do Nariz Vermelho. Eu acho que as celebrações dos 20 anos vão começar no próximo trimestre.

Eu acho que há duas ideias fundamentais. A primeira é que a pandemia dê tréguas, para nos deixar celebrar a vida. Acho que o mote, para mim, é a celebração da vida, e para a Operação Nariz Vermelho também. Depois, eu acho que toda a nossa celebração dos 20 anos vai ser à volta de agradecer. Nós somos uma organização que não tem nenhum apoio do Estado. Tirando a nossa maior fonte de rendimento, que é o IRS, nós somos financiados por apoios pontuais ou regulares de privados ou de empresas, por campanhas, por parcerias. Ou seja, é um ano para agradecer à sociedade por reconhecer a Operação Nariz Vermelho enquanto organização. Agradecer principalmente às crianças, aos pais e aos profissionais de saúde, que nos aceitam, que nos deixam entrar, que querem o nosso trabalho, e à sociedade em geral. Então, eu acho que o mote dos 20 anos é mesmo este: chegámos aqui; como é que nós podemos agradecer e dar de volta.

HN- Que projetos futuros têm em mente?

LTF- Claro que se fala sempre do sonho de chegar a todas as crianças, que toda a criança hospitalizada possa ter um Doutor Palhaço em Portugal. Nós temos pedidos de muitos hospitais, mas há muitos entraves. É difícil chegar a zonas mais remotas, por exemplo. Nós vamos tentar fazer um estudo sobre o Palhaços na Linha num hospital onde é mais difícil chegar. Mesmo que não seja o trabalho que nós fazemos, nós já vimos que o Palhaços na Linha funciona. Agora, será que pode funcionar como um projeto em os hospitais só têm o Palhaços na Linha? Quem sabe. A pandemia também abriu novos caminhos.

Mas, para chegar a mais hospitais, nós precisamos principalmente de mais artistas, mais palhaços, Claro que também precisamos sempre de mais fundos, porque nós somos todos profissionais remunerados. Sem Doutores Palhaços não conseguimos chegar a mais hospitais. Acho que o grande desafio é a formação de novos Doutores Palhaços, porque não os há em número suficiente em Portugal. Nós temos o “sonhozinho” de abrir uma escola de palhaços onde possamos formá-los para trabalhar nos hospitais. Isso é um grande sonho.

Entrevista de Rita Antunes

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