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Estudo revela principal alvo do SARS-CoV-2 no cérebro e descreve efeitos do vírus no sistema nervoso

 

Study reveals main target of SARS-CoV-2 in brain and describes effects of virus on nervous system
Pesquisas de grupos da Universidade de São Paulo e da Universidade Estadual de Campinas combinaram exames de ressonância magnética do cérebro de pacientes leves com COVID-19, análise de tecido cerebral de pessoas que morreram da doença e experimentos em células nervosas humanas infectadas em laboratório. Imagem demonstrando atrofia da espessura cortical em cérebros de pacientes leves com COVID-19, obtida por morfometria baseada em superfície. Crédito: PNASemy of Sciences (2022). DOI: 10.1073/pnas.2200960119

Um estudo brasileiro publicado na revista PNAS descreve alguns dos efeitos que a infecção pelo SARS-CoV-2 pode ter no sistema nervoso central. Uma versão preliminar (ainda não revisada por pares) publicada em 2020 foi uma das primeiras a mostrar que o vírus que causa o COVID-19 pode infectar células cerebrais, especialmente astrócitos. Também inovou ao descrever alterações na estrutura do córtex, a região do cérebro mais rica em neurônios, mesmo em casos de COVID-19 leve.

O córtex cerebral é a camada externa de substância cinzenta sobre os hemisférios. É o maior local de integração neural no sistema nervoso central e desempenha um papel fundamental em funções complexas, como memória, atenção, consciência e linguagem.

A investigação foi conduzida por diversos grupos da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadores do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), Instituto D’Or (IDOR) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) também contribuíram para o estudo.

“Dois estudos anteriores detectaram a presença do novo coronavírus no cérebro, mas ninguém sabia ao certo se estava na corrente sanguínea, nas células endoteliais [revestindo os vasos sanguíneos] ou nas células nervosas. Mostramos pela primeira vez que ele realmente infecta e se replica em astrócitos, e que isso pode reduzir a viabilidade dos neurônios”, disse Daniel Martins-de-Souza, um dos líderes do estudo, à Agência FAPESP. Martins-de-Souza é professor do Instituto de Biologia da UNICAMP e pesquisador vinculado ao IDOR.

Os astrócitos são as células mais abundantes do sistema nervoso central. Suas funções incluem fornecer suporte bioquímico e nutrientes para os neurônios; regulação dos níveis de neurotransmissores e outras substâncias que podem interferir no funcionamento neuronal, como o potássio; manutenção da barreira hematoencefálica que protege o cérebro de patógenos e toxinas; e ajudando a manter a homeostase cerebral.

A infecção de astrócitos foi confirmada por experimentos usando tecido cerebral de 26 pacientes que morreram de COVID-19. As amostras de tecido foram coletadas durante autópsias realizadas com procedimentos minimamente invasivos por Alexandre Fabro, patologista e professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). A análise foi coordenada por Thiago Cunha, também professor da FMRP-USP e membro do Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID).

Os pesquisadores usaram uma técnica conhecida como imunohistoquímica, um processo de coloração em que os anticorpos atuam como marcadores de antígenos virais ou outros componentes do tecido analisado. “Por exemplo, podemos inserir um anticorpo na amostra para tornar os astrócitos vermelhos ao se ligarem a eles, outro para marcar a proteína de pico SARS-CoV-2 tornando-a verde e um terceiro para destacar o RNA de fita dupla do vírus, que só aparece durante a replicação, tornando-o magenta”, explicou Martins-de-Souza. “Quando as imagens produzidas durante o experimento foram sobrepostas, todas as três cores apareceram simultaneamente apenas nos astrócitos.”

Segundo Cunha, a presença do vírus foi confirmada em cinco das 26 amostras analisadas. Alterações sugerindo possíveis danos ao sistema nervoso central também foram encontradas nessas cinco amostras.

“Observamos sinais de necrose e inflamação, como edema [inchaço causado pelo acúmulo de líquido], lesões neuronais e infiltrados de células inflamatórias”, disse ele.

A capacidade do SARS-CoV-2 de infectar o tecido cerebral e sua preferência por astrócitos foram confirmadas por Adriano Sebolella e seu grupo na FMRP-USP usando o método de cultura de fatias derivadas do cérebro, modelo experimental em que o tecido cerebral humano obtido durante a cirurgia para tratar doenças neurológicas, como epilepsia refratária a drogas, por exemplo, é cultivada in vitro e infectada com o vírus.

Sintomas persistentes

Em outra parte da pesquisa, realizada na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da UNICAMP, 81 voluntários que se recuperaram de COVID-19 leve foram submetidos a exames de ressonância magnética (RM) de seus cérebros. Essas varreduras foram realizadas 60 dias após o teste de diagnóstico, em média. Um terço dos participantes ainda apresentava sintomas neurológicos ou neuropsiquiátricos na época. Eles se queixaram principalmente de dor de cabeça (40%), fadiga (40%), alterações de memória (30%), ansiedade (28%), perda do olfato (28%), depressão (20%), sonolência diurna (25%), perda de paladar (16%) e baixa libido (14%).

“Publicamos um link para que as pessoas interessadas em participar do teste se registrem e ficamos surpresos ao receber mais de 200 voluntários em apenas alguns dias. Muitos eram polissintomáticos, com queixas muito variadas. Além do exame de neuroimagem, eles estão sendo avaliados neurologicamente e fazendo testes padronizados para medir o desempenho em funções cognitivas como memória, atenção e flexibilidade mental. No artigo apresentamos os resultados iniciais”, disse Clarissa Yasuda, professora e membro do Instituto Brasileiro de Pesquisas em Neurociência e Neurotecnologia (BRAINN).

Apenas voluntários diagnosticados com COVID-19 por RT-PCR e não hospitalizados foram incluídos no estudo. As avaliações foram realizadas após o término da fase aguda e os resultados foram comparados com dados de 145 indivíduos saudáveis ​​não infectados.

Os exames de ressonância magnética mostraram que alguns voluntários apresentaram diminuição da espessura cortical em algumas regiões do cérebro em comparação com a média dos controles.

“Observamos atrofia em áreas associadas, por exemplo, à ansiedade, um dos sintomas mais frequentes no grupo de estudo”, disse Yasuda. “Considerando que a prevalência de transtornos de ansiedade na população brasileira é de 9%, os 28% que encontramos é um número alarmante. Não esperávamos esses resultados em pacientes que tiveram a forma leve da doença”.

Em testes neuropsicológicos destinados a avaliar o funcionamento cognitivo, os voluntários também tiveram desempenho inferior em algumas tarefas em comparação com a média nacional. Os resultados foram ajustados para idade, sexo e escolaridade, bem como o grau de fadiga relatado por cada participante.

“A questão que nos resta é esta: esses sintomas são temporários ou permanentes? Até agora, descobrimos que alguns assuntos melhoram, mas infelizmente muitos continuam a sofrer alterações”, disse Yasuda. “O que é surpreendente é que muitas pessoas foram reinfectadas por novas variantes, e algumas relatam sintomas piores do que tinham desde a primeira infecção. Diante do novo vírus, vemos o acompanhamento longitudinal como crucial para entender a evolução das alterações neuropsiquiátricas ao longo do tempo e para que esse entendimento sirva de base para o desenvolvimento de terapias direcionadas.”

Metabolismo energético afetado

No Laboratório de Neuroproteômica do IB-UNICAMP, que é chefiado por Martins-de-Souza, foram realizados experimentos em células de tecido cerebral de pessoas que morreram de COVID-19 e astrócitos cultivados in vitro para descobrir como a infecção por SARS-CoV-2 afeta o sistema nervoso células do sistema do ponto de vista bioquímico.

As amostras da autópsia foram obtidas em colaboração com o grupo liderado por Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP). O proteoma (todas as proteínas presentes no tecido) foi mapeado por espectrometria de massa, técnica empregada para identificar diferentes substâncias em amostras biológicas de acordo com sua massa molecular.

“Quando os resultados foram comparados com os de indivíduos não infectados, várias proteínas com expressão alterada foram encontradas em abundância nos astrócitos, o que validou os achados obtidos por imuno-histoquímica”, disse Martins-de-Souza. “Observamos alterações em várias vias bioquímicas nos astrócitos, especialmente vias associadas ao metabolismo energético .”

O próximo passo foi repetir a análise proteômica em astrócitos cultivados infectados em laboratório. Os astrócitos foram obtidos a partir de células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs). O método consiste em reprogramar células adultas (derivadas da pele ou outros tecidos de fácil acesso) para assumir um estágio de pluripotência semelhante ao das células-tronco embrionárias. Essa primeira parte foi realizada no laboratório IDOR de Stevens Rehen, professor da UFRJ. A equipe de Martins-de-Souza então usou estímulos químicos para fazer com que as iPSCs se diferenciassem em células-tronco neurais e, eventualmente, em astrócitos.

“Os resultados foram semelhantes aos da análise de amostras de tecidos obtidas por autópsia, pois mostraram disfunção do metabolismo energético”, disse Martins-de-Souza. “Fizemos então uma análise metabolômica [com foco nos metabólitos produzidos pelos astrócitos cultivados], que evidenciou alterações no metabolismo da glicose. Por alguma razão, os astrócitos infectados consomem mais glicose do que o normal e, ainda assim, os níveis celulares de piruvato e lactato, os principais substratos energéticos, diminuíram significativamente”.

O lactato é um dos produtos do metabolismo da glicose, e os astrócitos exportam esse metabólito para os neurônios, que o utilizam como fonte de energia. A análise in vitro dos pesquisadores mostrou que os níveis de lactato no meio de cultura celular eram normais, mas diminuídos dentro das células. “Os astrócitos parecem se esforçar para manter o fornecimento de energia aos neurônios, mesmo que esse esforço enfraqueça seu próprio funcionamento”, disse Martins-de-Souza.

Como resultado desse processo, o funcionamento das mitocôndrias dos astrócitos (organelas produtoras de energia) foi de fato alterado, influenciando potencialmente os níveis cerebrais de neurotransmissores como o glutamato, que excita os neurônios e está associado à memória e aprendizado, ou ácido gama-aminobutírico (GABA), que inibe o disparo excessivo de neurônios e pode promover sentimentos de calma e relaxamento.

“Em outro experimento, tentamos cultivar neurônios no meio onde os astrócitos infectados cresceram anteriormente e medimos uma taxa de morte celular maior do que o esperado. Ou seja, esse meio de cultura ‘condicionado por astrócitos infectados’ enfraqueceu a viabilidade dos neurônios”, disse Martins-de-Souza.

Os achados descritos no artigo confirmam os de vários estudos publicados anteriormente que apontam para possíveis manifestações neurológicas e neuropsiquiátricas do COVID-19.

Resultados de experimentos com hamsters realizados no Instituto de Biociências (IB-USP), por exemplo, reforçam a hipótese de que a infecção pelo SARS-CoV-2 acelera o metabolismo dos astrócitos e aumenta o consumo de moléculas usadas para gerar energia, como glicose e o aminoácido glutamina. Os resultados obtidos pelo grupo liderado por Jean Pierre Peron indicam que essa alteração metabólica prejudica a síntese de um neurotransmissor que desempenha um papel fundamental na comunicação entre os neurônios.

Perguntas não respondidas

Segundo Martins-de-Souza, não há consenso na literatura científica sobre como o SARS-CoV-2 chega ao cérebro. “Alguns experimentos em animais sugerem que o vírus pode atravessar a barreira hematoencefálica. Há também a suspeita de que infecte o nervo olfativo e a partir daí invada o sistema nervoso central. Mas são hipóteses por enquanto”, disse.

Uma das descobertas reveladas pelo artigo da PNAS é que o vírus não usa a proteína ACE-2 para invadir células do sistema nervoso central, como faz nos pulmões. “Os astrócitos não têm a proteína em suas membranas. Pesquisa de Flávio Veras [FMRP-USP] e seu grupo mostra que o SARS-CoV-2 se liga à proteína neuropilina nesse caso, ilustrando sua versatilidade em infectar diferentes tecidos”, disse Martins-de-Souza.

No Laboratório de Neuroproteômica da UNICAMP, Martins-de-Souza analisou células nervosas e outras afetadas pela COVID-19, como adipócitos, células do sistema imunológico e células gastrointestinais, para ver como a infecção alterava o proteoma.

“Agora estamos compilando os dados para buscar peculiaridades e diferenças nas alterações causadas pelo vírus nesses diferentes tecidos. Milhares de proteínas e centenas de vias bioquímicas podem ser alteradas, com variações em cada caso. Esse conhecimento ajudará a orientar a busca por terapias específicas para cada sistema prejudicado pela COVID-19”, disse.

“Também estamos comparando as diferenças proteômicas observadas no tecido cerebral de pacientes que morreram de COVID-19 com diferenças proteômicas que encontramos ao longo dos anos em pacientes com esquizofrenia. Os sintomas de ambas as condições são bastante semelhantes. A psicose, o sinal mais clássico da esquizofrenia, também ocorre em pessoas com COVID-19.”

O objetivo do estudo é descobrir se a infecção pelo SARS-CoV-2 pode levar à degeneração da substância branca no cérebro, composta principalmente por células gliais ( astrócitos e micróglia) e axônios (extensões de neurônios). “Observamos uma correspondência significativa [no padrão de alterações proteômicas] associada ao metabolismo energético e às proteínas gliais que parecem importantes tanto no COVID-19 quanto na esquizofrenia. Esses achados talvez possam fornecer um atalho para os tratamentos dos sintomas psiquiátricos da COVID-19”, ponderou Martins-de-Souza.

Marcelo Mori, professor do IB-UNICAMP e membro do Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC), o estudo só foi possível graças à colaboração de pesquisadores com formações e conhecimentos variados e complementares. “Isso demonstra que a ciência competitiva de primeira classe é sempre interdisciplinar”, disse ele. “É difícil competir internacionalmente se você ficar dentro de seu próprio laboratório, confinado às técnicas com as quais está familiarizado e aos equipamentos aos quais tem acesso.”

Citation:
Study reveals main target of SARS-CoV-2 in brain and describes effects of virus on nervous system (2022, October 1)
retrieved 1 October 2022
from https://medicalxpress.com/news/2022-09-reveals-main-sars-cov-brain-effects.html

 

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