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Adalberto Campos Fernandes: “As PPP vão regressar ao SNS”

O antigo ministro da Saúde de António Costa, em entrevista exclusiva ao nosso jornal, fala da reforma em curso no SNS, afirmando que “não há dúvida de que a vontade de resolver problemas de uma forma muito prática tem sido manifesta” e destacando a opção pela generalização das ULS a todo o país. Mas tem reparos a apontar, como “o pecado original do nascimento de uma estrutura nova, como a Direção Executiva, criada de uma forma muito política e pouco técnica”. De facto, afirma, “não houve aquilo a que nós chamamos o trabalho de casa, que é, antes de criar a estrutura, enquadrá-la e identificar quais as atribuições e competências que vai ter; quais os conflitos de competências que vai ter com os outros órgãos; quem é que se relaciona com quem…” Para o ex-governante, a quase extinção das parcerias PPP, deveu-se à posição ideológica do Bloco de Esquerda e do Partido Comunista, que suportaram o governo no Parlamento, de 2015 a 2019. Uma posição que, diz, “num novo quadro político” será certamente revertida.

HealthNews (HN) – A dias de completar quatro meses de exercício, a Direção Executiva do SNS mostra grande ímpeto reformador. É possível, neste momento, fazer um balanço indicativo disto? Começou com “o pé direito”?

Adalberto Campos Fernandes (ACF) – Se a Direção Executiva começou com “o pé direito”, há que dizer que, pelo menos, entrou com determinação e com vontade de transformar, de introduzir alterações e reformas que há muito estão desenhadas e pensadas. Claro que existe aqui uma grande dificuldade que tem que ver com a própria natureza deste novo organismo, as condições em que foi criado, o seu estatuto. Verificam-se ainda alguns problemas de articulação com as outras entidades da administração da saúde. Mas não há dúvida de que a vontade de resolver problemas de uma forma muito prática tem sido manifesta.

HN – Pese essa boa vontade, a verdade é que quando consultamos os documentos emanados pela Direção Executiva confrontamo-nos apenas com matérias ligadas à organização dos serviços de urgência. Porquê? É apenas esse o problema do sistema?

ACF – Não me parece que isso corresponda exatamente à realidade, uma vez que a Direção Executiva desde há vários meses que tem estado a trabalhar na constituição de uma rede alargada de Unidades Locais de Saúde, que é um instrumento muito relevante na transformação do sistema, tendo em vista, aliás, a progressiva substituição das Administrações Regionais de Saúde e a deslocação de grande parte dessas atribuições e competências para as ULS. Essa é uma vertente do trabalho que está a decorrer e a Direção Executiva já anunciou um conjunto vasto de novas ULS, e sei que até ao final do ano esse número será substancialmente alargado. Por outro lado, tem sido referido o alargamento, também, dos programas dos Centros de Responsabilidade Integrada (CRI), que visam introduzir agilidade e maior competitividade em termos de quantidade e de qualidade nos hospitais.

HN – Aqui há dias, numa entrevista em que o Professor também participou, uma ex-titular da pasta questionou relativamente à autonomia do CEO do SNS: “Concebe um CEO que não tem nenhum controlo, nem sobre o planeamento, designadamente de recursos humanos e investimento, nem sobre a orientação de recursos financeiros, para fazer acontecer as coisas?”, defendendo que o estatuto da Direção Executiva do SNS deveria ser alterado. Concorda?

ACF – É evidente que essas dificuldades mencionadas pela Dra. Maria de Belém refletem aquilo que foi o pecado original do nascimento de uma estrutura nova, como a Direção Executiva, criada de uma forma muito política e pouco técnica. De facto, não houve aquilo a que nós chamamos o “trabalho de casa”, que é, antes de criar a estrutura, enquadrá-la e identificar quais as atribuições e competências que vai ter, quais os conflitos de competências que vai ter com os outros órgãos, quem é que se relaciona com quem.

A administração pública é demasiado complexa e intrincada para que seja possível, através de um simples passo, criar uma estrutura, sem cuidar da maneira como ela se insere e se articula. A informação que eu tenho, e que nós todos temos, é que está em curso um processo de adaptação e de melhoria do próprio estatuto que visa suprir essas dificuldades que foram mencionadas, que, reconheço, têm tornado mais difícil o trabalho desta mesma Direção Executiva (DE-SNS). De facto a DE-SNS tem estado, em grande medida, a trabalhar com pouca rede ou com uma rede muito frágil. Isso torna o exercício que tem de efetuar bastante mais difícil do que seria se estivesse tudo bem definido e bem enquadrado desde a primeira hora.

HN – Nessa mesma entrevista, destacou como entraves à reforma, a burocracia “que resiste aos tempos, governos e ciclos políticos, comprometendo a nomeação e evolução”. Disse concretamente: “a burocracia é endémica na sociedade portuguesa e isso compromete a vitalidade dos próprios processos e diminui a capacidade de execução do diretor executivo”. Como mudar este estado de coisas? Não será necessária uma reforma mais profunda?

ACF – Essa reflexão extravasa muito o domínio da Saúde. Portugal tem procurado fazer, ao longo dos anos, reformas ou introduzir mudanças que melhorem esse mesmo excesso de burocracia. Os programas de simplificação administrativa, de desmaterialização, como o Simplex, são claramente avanços. Repare que somos todos do tempo em que a simples entrega da declaração do IRS era um exercício penoso que nos poderia tomar semanas de trabalho e que muitas vezes nos obrigava a recorrer a apoio especializado. Era um trabalho de enorme complexidade, que hoje é das áreas mais avançadas e automatizadas. Mas há, de facto, ainda, um atraso muito grande naquilo que eu chamaria de um novo ecossistema na malha de processos e procedimentos. Temos um Estado que é pesado, não tanto por ter funcionários a mais ou a menos, mas porque alterna a satisfação com a ancestralidade. Temos, no caso do sistema fiscal, uma dinamização muito forte e também já temos, na saúde, algumas ilhas de atividade… Dou-lhe o exemplo de algo em que eu participei muito no meu tempo no governo, que foi o poderoso avanço na prescrição eletrónica, muito útil durante a pandemia; o boletim de vacinas digital; a própria preparação, que agora está em evolução mais acentuada, da prescrição de meios complementares de diagnóstico e terapêutica. Mas ainda hoje não é fácil partilhar os dados clínicos com outro hospital público ou com um hospital da rede social ou da rede privada. Há aqui ainda muito caminho para fazer. Há que libertar os profissionais de tarefas redundantes, inúteis e burocráticas. Admito que agora, com o PRR, com algum reforço financeiro que possa haver, esses processos digitais possam avançar e nós tenhamos os médicos, os enfermeiros e os farmacêuticos cada vez mais focados na sua atividade clínica e assistencial e menos nas tarefas burocráticas.

HN – A saúde mantém-se refém do Ministério das Finanças. Como se pode fazer avançar reformas que carecem de uma maior autonomia de decisão e maleabilidade burocrática?

ACF – Essa é uma matéria que tem várias leituras. Posso-lhe dar o exemplo da minha experiência pessoal, dos três anos em que estive no governo, em que a saúde sentiu, como sentiram todos os ministérios, um enorme controlo e contenção. Por vezes, uma contenção para além daquilo que estava contido nas expectativas orçamentais definidas em Conselho de Ministros, por parte das Finanças. Creio que é uma questão que não diz respeito apenas a Portugal. É uma prática sistémica nos diferentes países. Os Ministérios das Finanças são, por tendência, muito controladores e muito restritivos na produção da despesa. Evidentemente que isso é um problema. Mas, repare, entre 2015-2018 o orçamento para a saúde pouco mais foi do que o orçamento que tinha existido no último governo da troika e com grande atividade assistencial. Depois, durante a pandemia, a despesa pública aumentou quase 70%. Portanto, não podemos dizer que as ineficiências, os problemas ou as dificuldades resultam apenas de um garrote das Finanças. Com a justificação da emergência que foi real e que foi visível, eu não tenho nenhuma dúvida de que houve também um menor controlo sobre a despesa ineficiente. Ou seja, foi introduzida nesse período muita despesa ineficiente.

HN – Como se explica essa “despesa” ineficiente?

ACF – Porque estávamos em emergência, compraram-se coisas que não era preciso comprar, assim como se fizeram unidades que não era preciso fazer. O recrutamento de profissionais foi muito assimétrico e, sobretudo, houve uma enorme paragem na resposta assistencial que nestes últimos dois anos começou a ser recuperada. O que eu quero dizer com isto é que, sim, é verdade que as Finanças ganhariam em ter contratos estabelecidos com, nomeadamente, os hospitais, os chamados Planos de Atividade e Orçamento, acompanhá-los, monitorizá-los, mas não fazer uma retenção à cabeça. Fazer um controlo e monitorização dos desvios, que é o que qualquer acionista deve fazer com as entidades sobre as quais tem tutela. Mas também lhe digo que é muito perigoso em qualquer sistema de saúde nacional de raiz pública, como é o nosso, entendermos que não existe nenhum tipo de necessidade de limites e que a despesa em saúde não deve conhecer limites. Isso é errado, porque há muita despesa em saúde que é ineficiente e quando nós gastamos de forma ineficiente numa área, vamos sentir falta desse valor noutra. Se há coisa que se fala mais em Portugal e no mundo inteiro é da sustentabilidade em saúde. E o que é esta sustentabilidade em saúde? É uma despesa sem limite, ou é uma despesa que tem que ser forte mas explicada com racionalidade, com criação de valor em saúde, com redução das desigualdades?

Por outro lado, temos um setor em que os stakeholders dependem muito do financiamento público. De facto, todos os stakeholders dependem, quer do setor farmacêutico, quer do setor dos dispositivos médicos. E também as farmácias e o próprio setor privado têm uma forte dependência do setor público em termos de contratação de serviços. Todos procuram, à volta da mesa do orçamento, reivindicar maior financiamento.

HN – E temos, de facto?

ACF – Passámos de 9 mil milhões de euros, para 15 mil milhões. Ou seja, descontado o efeito da pandemia, isso significa mais resultados. E é aí que eu creio que a organização em ULS, de forma integrada, com o envolvimento dos diferentes níveis de cuidados e a introdução de unidades nos hospitais semelhantes às USF, que são os CRI… Nós podemos ter profissionais mais motivados, melhor remunerados e, também, mais concentrados na resposta assistencial e daqui por um/dois anos ter as restrições de acesso, que são normais, que são as chamadas listas de espera clinicamente aceitáveis; mas não ter nem um único doente em lista de espera clinicamente inaceitável.

HN – Neste contexto das ULS, há uma crítica recorrente que temos ouvido de vários atores, que é a alegação de que não existe nenhum estudo cabal que demonstre que a integração vertical prevista nas ULS resulte em melhores os cuidados de saúde.

ACF – Também não existirá um estudo que demonstre o contrário. Não podemos pegar em estudos que comparam realidades que não são verdadeiramente comparáveis e extrair daí consequências para uma decisão política nacional. Vamos a factos: a Guarda tem uma ULS. Será que a Guarda tem piores indicadores relativamente ao Hospital de Santo António do Porto por ser uma ULS, ou terá piores indicadores por não ter recursos humanos, médicos e de enfermagem suficientes? Há uma coisa que tem que ser reconhecida. O financiamento capitacional com ajustamento do risco introduz uma maior partilha de risco entre o Estado que financia e a entidade que presta os cuidados. Uma governação clínica conjunta e integrada cria um clima mais favorável a que o utente esteja no centro do sistema e circule entre os diferentes níveis, quer internamente, quer na cooperação convencionada, articulada ou contratada do setor social, de forma mais eficiente. Agora, é evidente que essa comparação só fará sentido se se comparar essas ditas unidades com mais dificuldades, padronizando os recursos que elas têm ao seu dispor.

O sistema é complexo. Os estudos têm naturalmente importância porque analisam, em fotografia, realidades concretas, mas há claramente aqui um desígnio político. E isso também faz parte das reformas. Reformar é ter a capacidade e a coragem de, a partir daquilo que é um conhecimento mais sistémico, mais baseado na evidência nacional e internacional, definir um caminho, ir por diante. Depois, naturalmente, só posso comparar a ULS da Guarda com a ULS de Matosinhos quando, por cama hospitalar ou por unidade de internamento, a ULS da Guarda tem exatamente os mesmos recursos que tem a de Matosinhos. Uma nota final. Há uma coisa que lhe garanto: as ULS e a integração de cuidados, em todo mundo, são melhores do que a fragmentação e a segmentação dos cuidados. Um sistema fragmentado, com cadeias de poder competitivas paralelas ou concorrenciais, faz com que os utentes circulem entre diferentes níveis falando e repetindo argumentos e, muitas vezes, repetindo até exames desnecessariamente e tendo um percurso que lhes é muito hostil, muito adverso. Por exemplo: uma pessoa que trabalha tem que, na sua relação com o sistema de saúde, ter as respostas concentradas da forma mais rápida e integrada possível. Não pode andar a perder dias de trabalho. E aqui entramos no campo da Governação Clínica em que, por exemplo, os médicos de família devem estar ao lado dos médicos hospitalares, e vice-versa, a governar em conjunto aquela pessoa em concreto.

HN – Falou da ULS de Matosinhos. Em entrevista ao nosso jornal, na última edição, o presidente da ULS de Matosinhos queixava-se: “exigem-se resultados tendo em conta a organização, mas todos os sistemas de informação, legislação, contratualização e financiamento não pensam ULS”. Existe, mais do que vontade, força política para alterar esta situação?

ACF- Tem razão. Falávamos há pouco da fragmentação e da segmentação. Recuemos no tempo. Passámos de uma fase em que todos os hospitais eram do setor público administrativo, até 2001/2002, com uma carga burocrática pesada e procedimentos de contratação de pessoas e aquisição de bens e serviços, difíceis e os centros de saúde, na altura assim designados, a fazer o seu percurso em paralelo. Zero nível de integração, praticamente.

Em 2001/2002 foram criados os primeiros hospitais SA, apenas e só com um foco na eficiência ou, se quiser, um foco empresarial, digamos, de maior atenção ao controlo da despesa. Em 2005 esses hospitais SA foram transformados em EPE. Desde essa altura para cá o que é que nós tínhamos/temos: hospitais do setor público administrativo, que ainda existem hoje, poucos, mas que ainda existem; hospitais SA que depois foram renomeados EPE; centros hospitalares que agregavam três, quatro, cinco ou, no caso do Lisboa Central, por exemplo, seis ou sete unidades que anteriormente eram hospitais autónomos; hospitais autónomos que não estão integrados em centro hospitalar, como é o caso do hospital de Évora ou do Amadora-Sintra; ULS, como sabe e referiu bem há pouco, Matosinhos, são cerca de 8 neste momento; hospitais especializados como os psiquiátricos; os IPO e o Instituto Gama Pinto. Dentro dos cuidados de saúde primários passámos a ter e ainda temos: unidades de cuidados de saúde personalizados, que herdaram um pouco a antiga tradição dos centros de saúde; USF do tipo A e USF do tipo B. Nestas últimas resultou termos utentes a serem servidos a duas velocidades, uns a serem servidos numa USF B que funciona com um padrão de grande proximidade e de grande eficiência e, no mesmo edifício, no andar de baixo, pessoas a irem às seis da manhã para o centro de saúde marcar uma consulta. É preciso dizer que esta segmentação e esta fragmentação não pode conduzir nunca a bom porto. Portanto, a concentração das cadeias de comando orgânico e empresarial com as cadeias de governação clínica tem de ser mais trabalhada. A eficiência, os contratos de financiamento e a contratualização dos hospitais, têm que lhes dar autonomia; têm um ano para mostrar o que valem, e acionistas (Finanças e Saúde) que os acompanham.

E tem ainda que haver aquilo que também nos outros países representa um problema: no Interior e fora dos grandes centros – em toda a parte da Europa – é mais difícil captar recursos especializados do que nas grandes cidades. Portanto, se estamos a avaliar a Cardiologia de Leiria e a Cardiologia de Portalegre, podemos encontrar diferenças que não se devem apenas ao fator geográfico ou ao fator organizacional. Pode acontecer que Leiria tenha mais cardiologistas do que tem Portalegre. É este o trabalho que a Direção Executiva está a fazer, que é um trabalho que, naturalmente, é muito exigente e ainda precisará de algum tempo. É um trabalho de simplificar estes modelos de organização, de os tornar mais concentrados numa governação homogénea e de eliminar a grande fragmentação que hoje existe de modelos, introduzindo depois os fatores de equidade que são necessários para que os hospitais do Interior tenham mecanismos diferentes para ter os mesmos recursos ou, pelo menos, próximos dos que têm os hospitais do Litoral.

Se esta gestão de recursos é apenas baseada numa tabela salarial igual, em condições de trabalho iguais, obviamente que os jovens médicos tendem a preferir e a escolher hospitais junto dos grandes centros urbanos e com grande diferenciação tecnológica. É por isso que há que tratar de maneira diferente aquilo que de facto é desigual, como é o caso do Interior do país e até do Algarve.

HN – Nesta mesma entrevista, o presidente do conselho de administração da ULS Matosinhos queixa-se de que na maioria das ULS os sistemas de informação que suportam cuidados primários e hospitalares não comunicam entre si. “Para um modelo como as ULS é uma questão central”, defende. Há mais de 10 anos que estes problemas de comunicação entre níveis de cuidados permanecem.

ACF – É verdade. Avançou-se alguma coisa. Espera-se agora que os 300 milhões do PRR possam dar o impulso que falta. Há questões que têm que ver com a arquitetura, o chamado hardware, e outras com as redes, com a comunicação, e há ainda aspetos que têm que ver com o software. Não há muitos anos, só para substituir tudo aquilo que é a chamada rede interna do SNS, passar das formas clássicas para o digital avançado, falava-se em dezenas larguíssimas de milhões de euros. Havia centros de saúde que ainda tinham sistemas antigos. E portanto, esse aspeto da arquitetura, da máquina e das redes precede o resto. Eu posso ter um excelente software mas se não tiver maneira de o pôr a funcionar de maneira integrada, tenho um problema. E depois, há que efetivamente trabalhar em cima de soluções de software que sejam mais simplificadoras, que retirem carga burocrática aos médicos, aos enfermeiros e aos farmacêuticos.

Um médico não pode estar a fazer uma consulta e estar os 15/10 minutos a olhar para o computador e, no teclado, à procura de janelas e de painéis. Essa é uma batalha que, não sendo exclusiva de Portugal, tem vindo a melhorar. Temos soluções cada vez menos dependentes do teclado e com mais interação com os próprios ecrãs digitais. Temos que ter a função de voz, poder ditar uma receita através de voz, podermos acionar uma teleconsulta de uma forma simples e segura sem nenhum ritual burocrático excessivo. Isso requer muito investimento, naturalmente, e requer que se eliminem de vez as barreiras entre cuidados de saúde primários e cuidados hospitalares. E aí o presidente da ULS Matosinhos tem razão.

No limite, há quem diga, e eu de certa maneira aceito esse tipo de argumento, que se tivéssemos hoje uma virtualização dos processos e dos procedimentos, não precisávamos de fazer reforma nenhuma, porque o médico do centro de saúde da Amadora trabalhava de uma forma automática, efetiva e muito simples com o médico do hospital Amadora-Sintra. E não era a questão física, nem era a questão orgânica, que ia fazer a diferença. A batalha na saúde hoje em dia é uma batalha por uma digitalização que seja amiga de quem trabalha, facilite a vida a quem trabalha, e que seja muito útil para o utente.

HN – Como é que se integra uma USF de modelo B numa ULS?

ACF – Da mesma forma que se integra um CRI. O CRI, que no fundo são as USF dos hospitais, são fórmulas de organização autonómica e específica de grupos de profissionais. Portanto, a liberdade e a autonomia que as USF têm no seu estatuto é a mesma que os CRI hospitalares têm de ter. Diria que o que a gestão faz é trabalhar como se fossem favos de uma colmeia, de uma forma articulada. O seu papel é articular e agilizar e é retirar partido dessa autonomia e desse elevado desempenho. A proliferação dos CRI nos hospitais vai ajudar a que a proliferação das USF nos cuidados de saúde primários constituam enzimas dentro de um enorme organismo. Enzimas que aceleram a eficiência e a resposta mais adequada.

HN- Falando de cuidados de saúde primários, temos neste momento o maior número de sempre de utentes sem médico de família, que poderá aumentar se 500 médicos que vão estar em condição de se reformarem o fizerem este ano. Como é que uma situação tão grave como esta se compatibiliza com uma ULS?

ACF – Quando saí do governo, no final de 2018, tínhamos sem médico de família cerca de 480 mil portugueses. Tínhamos recuperado em relação ao tempo da troika. Tínhamos passado de 1,3 milhões para 480 mil. E, na altura, na projeção que fazíamos, tínhamos bem presente o mapeamento das reformas, da aposentação, que se ia concentrar muito na atualidade. E olhávamos para a capacidade formativa e para o número presumido de internos que iam acabar a especialidade e a sensação que tínhamos era a de que iria ser uma substituição fisiologicamente neutra, porque o número de novos médicos internos iria suprir o número dos reformados.

O que depois aconteceu foram factos novos e não esperados: grande parte dos médicos de família não aceita a vaga que lhe é proposta. Ora, isso é um facto que não estava acautelado no planeamento. Se eu tinha por ano 400 médicos de família a terminar a especialidade, esse número chegava para ir compensando as reformas. Se eu tenho metade desses médicos a não querer aceitar a vaga, tenho um problema.

HN – Como ultrapassar o obstáculo?

ACF – Há que perceber as razões que levam estes médicos a não aceitarem as vagas. Também há que perceber que em Portugal há 1,4 ou 1,5 milhões de portugueses que não são utilizadores do médico de família, ou porque não querem ou porque não têm necessidade de o ser. Provavelmente o regime de construção das listas devia ser discutido com os próprios profissionais para tornar mais eficiente essa não utilização.

HN – Também no que toca à falta de médicos se registam assimetrias regionais…

ACF – O Norte não tem grandes problemas de cobertura, embora agora também no Nordeste haverá problemas que se colocam com as aposentações. Mas o Grande Porto e Braga não têm.

Onde está sobretudo concentrada a falta de cobertura é em Lisboa e Vale do Tejo.

HN – Há como “dar a volta” ao problema?

ACF – O ministro anunciou que ia aumentar o número de vagas para médicos de família, mas, provavelmente, as vagas não são o único elemento importante deste processo. É necessário compreender as razões que levam a que especialistas de MGF não queiram ocupar essas vagas, optando muitos deles por ir fazer serviço de urgência ou atividade privada. Esta é uma questão que tem de ser discutida, do ponto de vista da qualidade, do número, mas também sobre as condições que podem levar a que estes jovens médicos sejam atraídos para dentro do SNS.

HN – Os modelos PPP demonstraram inequivocamente benefícios, gerando ganhos económicos e de acesso. Como se explica a quase extinção do modelo?

ACF – Foi uma decisão muito mais política do que racional do ponto de vista económico. Ao longo dos ciclos políticos existem variações, muitas vezes até com os mesmos partidos. Podem existir diferentes opiniões e abordagens. Do meu ponto de vista, existiu pouca vontade de insistir nesse modelo, de continuar a lutar por ele.

HN – Mas qual a razão?

ACF – Acho que são razões políticas. Os partidos que inicialmente apoiavam o governo do Partido Socialista – o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda – sempre disseram, desde o primeiro minuto, que eram contra as PPP e que queriam acabar com as PPP. É uma posição que é clara, legítima; uma opção ideológica. Creio que houve uma altura em que, provavelmente, o Partido Socialista e o governo aceitaram, resignados, essa tendência, e não investiram num novo modelo. Afinal de contas, três ou quatro PPP num conjunto de 30 ou 40 hospitais públicos é relativamente pouco, mas tem a virtude de introduzir um fator interno de comparação. Ou seja, podemos ter a gestão pública tradicional, competente, capaz, e compará-la uma com a outra, São João com Santa Maria, Leiria com Santarém; mas se eu tiver quatro ou cinco hospitais que são do SNS mas têm gestão privada, introduzo aqui um comparador que me permite, até, retirar alguma aprendizagem.

Creio que as PPP vão regressar ao SNS. Não tenho dúvidas nenhumas que num novo quadro político isso irá acontecer. Porque não é uma questão estritamente ideológica. Não deve ser. Desde logo porque, se acrescenta valor e elementos de utilidade para a comparação, não faz nenhum sentido que não o utilize. Muitas vezes, quando se falava disso, eu dava o exemplo de que a parceria público privada mais antiga que existe em Portugal é com as farmácias comunitárias. Há mais de 60 anos que temos um acordo com as farmácias comunitárias que dele dependem na sua atividade comercial e empresarial (cerca de 70% é dinheiro público). Não passa pela cabeça de ninguém dizer que temos que nacionalizar as farmácias e que temos que ter uma gestão pública das farmácias. As farmácias prestam um serviço que é reconhecido, próximo das pessoas, que é valorizado e são, na prática, uma imensa parceria público/privada, porque o Estado utiliza a rede de farmácias para fazer chegar os medicamentos aos cidadãos.

Acabar com as PPP não foi uma boa opção. Lá mais à frente, seguramente, essa questão virá a ser colocada de novo.

HN- Uma nota final.

ACF – Desejo muito que a Direção Executiva seja bem-sucedida, que crie condições para que o Serviço Nacional de Saúde reforce a sua dimensão de eixo central, de pilar estratégico de referência no sistema de saúde português e de protetor das pessoas, sobretudo das mais desfavorecidas, e desempenhe um papel importante no acesso à saúde e na redução das desigualdades.

Desejo também que se olhe para o sistema de saúde como uma questão de regime, fomentando-se o diálogo alargado entre forças políticas que alternam no poder e que não fizéssemos do SNS uma questão de fação ou de barricada ideológica, porque a continuidade das políticas na área da saúde é tão ou mais importante do que noutras áreas. A minha palavra última é mesmo que a Direção Executiva tenha os instrumentos, a força, a energia, o apoio político que tem de ter do conjunto do governo, a colaboração das finanças e a colaboração de todos os que estão no terreno, que são os 150 mil que fazem o SNS diariamente e, naturalmente, se esses não estiverem alinhados, não há diretor executivo que nos valha.

Conheço bem o Professor Fernando Araújo, trabalhámos juntos, esteve comigo no governo. Conheço-lhe a determinação, a inteligência, a energia. Desejo que o trabalho corra bem a ele e à equipa, porque, se correr bem a ele e à equipa, correrá bem ao país.

Entrevista de Miguel Mauritti

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