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Joaquim Cunha: “O problema, em Portugal, é a carga ideológica que nos tem amordaçado”

HN- No que consiste, o que faz e quem são os membros do Health Cluster Portugal?

JC- O Health Cluster Portugal tem atualmente 226 associados que em conjunto formam aquilo a que chamamos a cadeia de valor da saúde. Estamos a falar de universidades e institutos de investigação. Diria que este é o princípio da cadeia. No fim da cadeia temos hospitais públicos, sobretudo os hospitais universitários, hospitais privados e também do setor social, nomeadamente a Santa Casa da Misericórdia do Porto. No meio, estão as empresas. Cento e oitenta serão empresas que atuam nesta cadeia de valor da saúde.

HN- Quais são os principais objetivos do Health Cluster Portugal? O que é que fazem na prática?

JC- Em termos concetuais, o nosso grande objetivo é fazer com que se olhe para a saúde pelo seu lado desenvolvimentista. No fundo, o que fazemos é promover esta cadeia de valor de que lhe falei; fazer com que a saúde ou esta cadeia de valor em que assenta a saúde seja mais próspera, gere mais riqueza, mais emprego, mais exportações. E é claro, aquilo que é comum a todas estas entidades é o cidadão, que pode ser doente, já foi ou há-de vir a ser.

Somos uma associação sui generis. Contrariamente àquilo que é comum à esmagadora maioria das associações, não estamos preocupados em defender o interesse dos nossos membros, até porque nalguns casos esses interesses são antagónicos. Estamos, sobretudo, interessados em defender a saúde no seu todo, sendo que, ao defendermos a saúde, estamos a defender o interesse de toda a cadeia de valor.

Desenvolvemos um conjunto de iniciativas que procuram dar suporte ao que referi atrás.

Definimos, há uns dois/três anos, para esta década que está a decorrer, quatro grandes agendas estratégicas: a agenda da inovação, que se preocupa sobretudo com valorizar o conhecimento, o conhecimento que está nas universidades, nos hospitais, nas empresas, e transformar isto em valor, quer sejam produtos, quer sejam serviços. Temos ainda a agenda da internacionalização, muito atenta aos temas da atração de investimento direto estrangeiro e ao tema da industrialização. A todas estas juntam-se mais duas sobre as quais atrever-me-ia a dizer que são as agendas do futuro: a digitalização e os dados. Isto porque acreditamos que grande parte dos desafios que a saúde tem em cima da mesa encontrarão boa parte da resposta na utilização inteligente destas novas tecnologias.

HN- A tutela comunica de alguma forma com o HCP?

JC- Há uma comunicação muito fluida, muito normal, ainda que quando se fala de tutela, há que dizer que são várias: o Ministério da Saúde, por razões óbvias, o Ministério da Economia e o da Ciência e Ensino Superior. É uma tutela tripartida, entre estes três departamentos governamentais com os quais mantemos uma relação fluida e frequente.

HN- É recorrente a declaração da existência de projetos e planos para uma saúde de futuro alicerçados num plano reformador da saúde por parte do HCP. Que projetos e planos são estes?

JC- São vários. Talvez, para simplificar, diria que nos tempos mais recentes, em 2019 ou 2020, elaborámos um trabalho de algum fôlego a que chamámos “Plano de Desenvolvimento da Saúde”, que pretendeu ser, e é, de alguma forma, um roadmap para esta década, dirigido às indústrias da saúde. Através dele procura-se caracterizar onde deveriam estar as nossas apostas. Trata-se, como é óbvio, de um plano orientador, porque quem está no terreno é que sabe como é que estas coisas acontecem. Acreditamos que o nosso ativo mais importante, o nosso ponto mais forte em termos nacionais é o conhecimento; o conhecimento que está nas universidades, nos hospitais e nas empresas. Tudo o que seja transformar e tirar partido deste conhecimento é a base. A seguir, temos um outro patamar, que é algo quase prosaico, que é o dos ensaios clínicos. Trata-se de um tema recorrente, que o HCP, desde o primeiro dia, assumiu como uma das suas bandeiras. E de facto, nos quinze anos que decorreram desde a constituição do HCP, as coisas têm melhorado, mas muito lentamente.

HN- Acha mesmo que alguma coisa melhorou ou foi mais ou menos como há 15 anos?

JC- No tema dos ensaios clínicos acho que alguma coisa melhorou, mas pouco. Se calhar sou muito derrotista, mas vai dar ao mesmo. Não adianta melhorar um bocadinho. Ou de facto tínhamos dado o salto… Como o que deram os nossos vizinhos de Espanha, particularmente na Catalunha, que mais ou menos neste período de tempo, deram um salto enorme. E isto com vantagens para toda a gente, dos doentes aos hospitais, o que acaba por se refletir no país no seu todo. Por cá, ficámos a marcar passo. É sempre a burocracia das coisas, uma doença que nos atacou e que não nos larga.

HN- Porque é que existem tantos impedimentos? Normalmente, quando falamos de inovação e de tentativa de implementação de novos projetos, a resposta que temos do lado da administração tem subjacente algum receio traduzível na expressão “parece que nos estão a enganar”.

JC- Há uma ideia de que estas iniciativas de mudança são uma espécie de um Cavalo de Troia das grandes companhias para dominarem o mercado. A evidência de outros países demonstra que não é assim. É evidente que tem que haver regras e as coisas têm que ser controladas. Agora, não podemos é, como justificação de um potencial medo, paralisarmos todo o desenvolvimento. Há falta de visão por parte dos nossos responsáveis. No Health Cluster Portugal temos estado envolvidos em grupos de trabalho, em workshops e temos elaborado documentos sobre o tema e a verdade é que nada avança. Ou se avança é muito lentamente, com prejuízos para o todo nacional.

HN- Está em curso uma reforma aparentemente estrutural do SNS. O Health Cluster tem contribuído de alguma forma para informar essa reforma, ou foi chamado para contribuir?

JC- Quando falamos dessa reforma, de alguma forma salta-nos à vista o tema da criação da Direção Executiva. Deixe-me dizer-lhe que nós, no princípio do ano que passou, fizemos sair uma proposta, que é um documento público (disponível no nosso website), a que na altura chamámos Instituto SNS, que defendia a criação de algo que depois verificámos ser parecido com a Direção Executiva. Julgo que foi uma boa contribuição que então demos. Não tenho coragem de reclamar para o Health Cluster a paternidade da iniciativa, nem isso faz sentido. Agora, temos informação de que o nosso documento serviu também de inspiração e de consulta, e fico muito contente pela solução a que se chegou. É evidente que ainda é cedo para tirar conclusões, mas acredito que foi uma excelente decisão.

HN- O CEO do SNS não tem tutela nem sobre os recursos humanos nem sobre o financiamento. Continua a depender do Ministério das Finanças e dos SPMS. Como é que um CEO pode funcionar capazmente com estas limitações?

JC- A resposta é fácil. Não pode. Só que depois isto é à portuguesa. Ele não tem tutela, mas se calhar vai ter um bocadinho; não está no papel, mas depois, na realidade… Num processo, diria eu que “manco”. Quando olhamos para os 15 mil milhões de euros, que é o que estamos a gastar coletivamente todos em saúde, concluímos todos que se trata, de facto, de “uma pipa de massa”.

HN- No fim de contas, continuamos a ter as mesmas estruturas que existiam. Como se explica isto estando a decorrer uma reforma estrutural?

JC- Não acredito em reformas em que se cria uma coisa nova e não se eliminam algumas das já existentes. Quando se cria uma coisa nova e se mantém tudo como estava… Na certa vai dar asneira. E porque é que não se elimina o que está? Porque há compromissos, Lealdades, favores. Enfim, há aqui desequilíbrios que são um cancro e que perturbam tudo o existe ou que se pretenda venha a existir: o próprio progresso da reforma. Na nossa proposta, os problemas que referiu não existiam, porque nela, o diretor executivo era isso mesmo: uma holding que controlava os principais recursos disponíveis.

Em qualquer parte do mundo existem grupos de empresas. Um hospital é uma empresa. Se tem lucro ou não isso é outra coisa. Agora, tenho que gerir com um conjunto de recursos que são finitos e neste caso são bastante complexos. As áreas dos recursos humanos do financiamento e a das tecnologias de informação são áreas-chave. Ora, se eu sou diretor executivo de um sistema destes e não tenho um controlo destas ferramentas, não vou conseguir ser bem-sucedido.

HN- À velha maneira portuguesa vai-se tapando buraco aqui, buraco ali. E a verdade é que a Direção Executiva ainda só tem 4 meses de existência, portanto é cedo para fazer grandes afirmações. Mas continuamos a assistir ao lançamento de concursos que nem buracos tapam, nem sequer se explica.

JC- Na saúde, a questão dos recursos humanos é porventura um problema. Não há volta a dar. Ou conseguem uma forma de cativar os recursos que lá estão.

HN- E como se cativam?

JC- Cativar é naturalmente pagando-lhes melhor, mas não só. É dar-lhes melhores condições. Temos hoje uma camada mais jovem que quer sobretudo ter liberdade para investigar e também ter maior liberdade para compatibilizar o trabalho com a sua vida pessoal. Se isso não for conseguido, o SNS vai definhar e vai morrer. Não há dúvidas de que este é o principal problema. E é algo que é consensual. Os portugueses estão disponíveis para pagar melhor a esses jovens.

Ainda assim, diria que mais do que pagar é muito importante resolver a questão da criação de condições adequadas.

HN- Vamos às PPP: um ex-titular da pasta diz que vão voltar. Como é que se consegue gerir? Por um lado, uma Direção Executiva de mãos atadas; por outro, um modelo de gestão que demonstrou ganhos económicos e em saúde e uma oposição dramática a todos estes modelos porque são privados.

JC- Existe boa gestão e má gestão. Se ela é privada ou pública, tanto se me dá. Temos que nos pôr de acordo, senão é um suicídio coletivo.

HN- A gestão privada tem a vantagem de ter os meios que faltam ao diretor executivo.

JC- A gestão privada não é melhor porque os privados são mais inteligentes, mas porque têm à sua disposição os meios que lhes permitem gerir. E premeiam os melhores assim como conseguem motivar os quadros. E planeiam. Tudo isto porque têm ferramentas que são usadas na gestão de qualquer organização. O problema, em Portugal, é a carga ideológica que nos tem amordaçado.

HN- A implementação de modelos Value Based tem sido uma das bandeiras do HCP. Esse modelo compagina-se com os modelos ULS?

JC- Não há uma relação entre uma coisa e outra. O conceito do Value Based Healthcare (VBH) é simples. Trata-se de introduzir na saúde a medição de resultados. Ora, quando se fala em resultados na saúde, é frequente a desculpa de que a Saúde não é como as outras áreas; que é uma coisa diferente, impossível de se medir. Não acho que seja. Mais uma vez o que nós temos em cima da mesa são recursos que temos que gerir da melhor forma. E se em última análise o nosso cliente é o doente, importa medir resultados também do ponto de vista dele. E esta é que é a grande mudança que se introduz com o VBH. Além da avaliação clínica, que é importante como é óbvio, é muito importante saber se o doente ficou satisfeito com os cuidados que lhe foram prestados. Com isto, estamos a introduzir uma variável, que existe em todos os outros setores, que é a ditadura do consumidor. Quem responde bem ao consumidor é bem-sucedido, quem responde mal ao consumidor ou muda ou é mal sucedido.

HN- Uma das consequências do modelo Value Based Healthcare é que gera uma concorrência em que o doente vai escolher em função dos outcomes a instituição em que pretende ser assistido. Mas de facto isso não existe hoje em dia. O doente vai para onde o mandam.

JC- Mas vai ter que existir. Não é só em Portugal que a Saúde está sob forte pressão. O mesmo se passa um pouco por toda a Europa. Há uma pressão muito forte sobre os sistemas de saúde. Isto decorre, não só da questão demográfica, mas acima de tudo de nós queremos ser cada vez mais bem tratados, e acho que temos toda a legitimidade para o exigir. Esta nova “ordem” tem feito pressão, quer nos sistemas públicos quer nos não públicos, porque as seguradoras também sentem isto, sobretudo em países em que boa parte da estrutura do financiamento da saúde assenta em seguros (modelo Bismarckiano). Estamos perante uma equação que é a seguinte: vamos ter que tratar nos próximos anos mais pessoas e vamos ter que as tratar melhor com os mesmos, ou até com menos, recursos. E isto vai ser possível pela introdução massiva e inteligente de tecnologia neste processo. Não só de tecnologia nos diagnósticos ou na prestação de cuidados, mas sobretudo na gestão, no planeamento e no controlo, que têm sido de alguma forma negligenciados na saúde. A gestão tem sido deixada para segundo plano. Isto acontece em Portugal e também um pouco por todo o mundo. Ora, para atingirmos o objetivo, vamos ter que chegar a modelos de livre escolha.

HN- Quando olhamos para o terreno, não vamos qualquer melhoria no que respeita aos inquéritos de satisfação ou à preocupação de saber como é que os utentes avaliaram os serviços de saúde. Inquéritos de satisfação aos utentes são exceções. Mesmo que o utente queira deixar a sua opinião, não existem objetivamente instrumentos que conduzam a esse direito. Só mesmo o livro de queixas.

JC- Associado ao Value Based HealthCare está isso mesmo, têm que se implementar procedimentos de recolha da perceção que o doente teve. Isso tem que ser regulado. Para isso será necessário um protocolo rigoroso para que depois possamos comparar. E isso, de facto, não existe.

HN- Já temos alguns exemplos em Portugal, os CRI por exemplo, que têm um financiamento autónomo, em função dos resultados. São ainda assim projetos cuja implementação é de alguma forma mitigada. São ainda residuais. Como se explica que havendo estas ferramentas que já mostraram funcionar elas não sejam replicadas em todo o país?

JC- Tenho várias explicações. Uma é aquela que referimos há pouco. Isto vai contra uma visão ideológica que volta e meia nos ataca, segundo a qual todas estas coisas mais não refletem do uma visão mercantilista na saúde, o que para mim não faz sentido. E também não tenho dúvidas de que há questões ligadas ao corporativismo de algumas classes, mais dos médicos, menos dos enfermeiros, mas há. E aqui, deixe-me sublinhar que não vejo mal que cada classe defenda os seus interesses. O que tem é que haver alguém no topo da carreira hierárquica política/administrativa que diga: meus caros, já chega. Veja-se o exemplo das Parcerias Público Privadas. As PPP também têm médicos e também têm enfermeiros e as entidades que as gerem não têm problemas. Os grupos privados que estiveram envolvidos nessas parcerias continuam a ter hospitais e sabem lidar com a procura de melhoria por parte das classes, o que é perfeitamente normal. O problema não está nos médicos, está na gestão.

HN- E quanto às oportunidades do PRR?

JC- O PRR é uma oportunidade que eu espero que não seja perdida. Estamos a falar, no que toca à saúde e às novas tecnologias para a saúde, em qualquer coisa na casa dos 500 milhões de euros. 300 do lado público e 200 do lado das empresas. Não vai resolver todos problemas, mas é dinheiro. É importante que desde logo nos alinhemos todos. Há quatro agendas da saúde. O HealthCluster está envolvido na maior, mas temos contato com as demais e a ideia é articularmo-nos. Estamos também a procurar articularmo-nos com a agenda pública, porque não faz sentido estarem uns a fazer uma coisa e os outros a fazer a mesmíssima coisa ou a fazer para lados diferentes. Isto não seria perdoável. Assim sendo, acredito que no “final do dia” vamos ser capazes. Temos que fazer a diferença: termos um registo de saúde eletrónico universal.

Não faz qualquer sentido que a informação de cada um de nós não esteja disponível independentemente se eu vou a um hospital do norte ou do sul, do privado ou do público. Pense na poupança efetiva que se vai conseguir quando esta informação estiver acessível em todo o sistema.

HN- Uma nota final…

JC- Primeiro deixar uma mensagem positiva. Independentemente de todos os pontos fracos e dos muitos problemas não deixámos de ter um sistema de saúde interessante. Que compara razoavelmente bem em termos internacionais. Pode melhorar, claro que pode. Mas é certamente uma das grandes conquistas das últimas décadas. Por vezes esquecemos esta questão mas se recuarmos 100 anos vemos que houve uma mudança estonteante. Agora, há uma crise de crescimento, uma crise deste sucesso que temos que abordar. No caso nacional em cinco ou seis anos, passámos de 9 mil milhões para 16 mil milhões de euros em termos orçamentais. Não vamos poder continuar a fazer isto, porque se vamos pôr mais dinheiro na saúde, vamos cortar onde? Os recursos são finitos. Onde temos que atuar é na forma como nos organizamos, e aí eu acho que a resposta está na tecnologia.

 

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