O conhecimento científico e a enfermagem
Daniel Marques da Silva*
Ernestina Maria Veríssimo Batoca**
INTRODUÇÃO
A proliferação das ciências e das técnicas forma um horizonte feito de lógicas, onde predominam o modo de fazer, a eficácia, a experiência e as distribuições das correlações estatísticas (Petitat, 1998). Vivemos numa era científica na qual predomina o conhecimento racional e o conhecimento científico é, para muitos, a única espécie de conhecimento aceitável. No entanto está a verificar-se uma mudança de paradigma que conduz a uma mudança profunda no pensamento, percepção e valores que formam uma determinada visão da realidade. O universo passa de uma visão mecanicista para a visão de um todo dinâmico, indivisível, no qual as partes são essencialmente inter-relacionadas (Waldow, 1998).
Este paradigma tem influenciado a enfermagem e o cuidar tem sido discutido nas suas múltiplas dimensões. As enfermeiras vêem as pessoas como seres totais, que possuem família, cultura, têm passado e futuro, crenças e valores que influenciam nas experiências de saúde e doença.
O conhecimento empírico parece avaliar mais o elemento intelectual. Contudo, como diz Watson (1988), a enfermagem é uma ciência humana não podendo estar limitada à utilização de conhecimento relativo às ciências naturais. A enfermagem lida com seres humanos, que apresentam comportamentos peculiares construídos a partir de valores, princípios, padrões culturais e experiências que não podem ser objectivados e tão pouco considerados como elementos separados.
A enfermagem tem-se desenvolvido numa estrutura particular de referência e, portanto, num tipo “particular” de conhecimento. Dizemos “particular” pois não se enquadra totalmente dentro do preconizado “conhecimento científico”. É frequente, na enfermagem, as enfermeiras depararem-se com situações que requerem acções e decisões para as quais não há respostas científicas. Em várias situações, como nos diz Waldow (1998), outras formas de conhecimento provêm insight e compreensão.
O conhecimento empírico é caracterizado por ser sistematicamente organizado em leis gerais e teóricas cujo propósito é o de descrever, explicar e predizer fenómenos de interesse especial. As teorias de enfermagem, conforme Chinn e Kramer (1995) referem, sofrem críticas e não são consideradas como totalmente enquadradas dentro das normas das teorias científicas. O que caracteriza as teorias de enfermagem é o facto de que elas englobam outros padrões de conhecimento, além do empírico. A enfermagem, como nos diz Waldow (1998), além das ideias dos teóricos sobre a saúde, inclui aspectos que reflectem crenças e valores. A pessoa da enfermeira, as pessoas com quem interage, assim como os insights que resultam da arte de enfermagem, são também incluídos. A enfermagem apropria-se de conhecimentos de outras áreas.
PADRÕES DE CONHECIMENTO NA ENFERMAGEM
Carper (1978), ao investigar a literatura de enfermagem, identificou e descreveu quatro padrões de conhecimentos que as enfermeiras têm valorizado e utilizado na prática. Além do conhecimento empírico refere os seguintes padrões:
- Conhecimento Ético
Este componente é considerado o conhecimento moral da enfermagem. Envolve julgamentos éticos constantes e, frequentemente, implica confrontar valores, normas, interesses ou princípios. O conhecimento ético não descreve ou prescreve a decisão a ser tomada, pelo contrário, ele provê insight sobre as possíveis escolhas a serem feitas e o seu porquê. A teoria ética não pode ser testada, porque os relacionamentos da teoria residem sobre uma lógica filosófica subjacente, que não pode ser empiricamente conhecida.
Para Chinn e Kramer (1995), a pesquisa empírica pode oferecer factos e informações que podem orientar o desenvolvimento do conhecimento ético e contribuir na formação de decisões éticas correctas, porém os métodos empíricos não podem ser usados para testar teorias éticas.
Segundo Carper (1978), o conhecimento ético, considerado o comportamento moral, vai além do simples conhecerem-se as normas ou códigos éticos da profissão, incluindo todas as acções voluntárias que são deliberadas e sujeitas a julgamentos.
2. Conhecimento Pessoal em Enfermagem
O conhecimento pessoal em enfermagem compreende a experiência interior de tornar-se um todo, um self consciente. Para isso é necessário absorver-se na totalidade da experiência conscientemente e fazer introspecção, criando-se um significado pessoal interior que é formado através das experiências da vida, ou melhor, experiências vividas.
Ao contrário do conhecimento ético e empírico, o conhecimento pessoal não é expresso directamente através da linguagem, mas sim pela sua existência. O que é percebido pelos outros é a existência da pessoa ou personalidade.
O conhecimento pessoal privilegia a totalidade e integridade, promove o envolvimento e evita comportamentos manipulativos e impessoais. Ao considerar o self da outra pessoa, por exemplo, o enfermeiro com/e o paciente, o encontro caracteriza-se por ser um cuidado, no qual ambos se ajudam a crescer.
Ao conhecer-se, conhece-se o outro, ou seja, identificamo-nos com o outro e isso compõe um elemento para o cuidado humano, que é manifestado apenas interpessoalmente (Watson, 1988).
3. Conhecimento Estético
Este tipo de conhecimento é conhecido como a arte da enfermagem. Expressa-se através das acções, comportamentos, atitudes, condutas e interacções da enfermagem com as pessoas. A percepção do significado em um encontro é o que cria uma acção de arte na enfermagem e a percepção do significado por parte da enfermeira é reflectida na acção realizada (Chinn e Kramer, 1995).
Johnson (1994) apresenta cinco sentidos de arte em enfermagem: habilidade em extrair significado nos encontros com os pacientes; habilidade em estabelecer uma conexão significativa com o paciente; habilidade em realizar actividades de enfermagem com competência; habilidade em usar a lógica ao prescrever o curso de uma acção de enfermagem; habilidade em conduzir moralmente a sua prática de enfermagem.
É importante ressaltar que, embora descritos separadamente, os quatro padrões de conhecimento ocorrem de forma inter-relacionada e emergem da totalidade da experiência, sendo cada um igualmente necessário, cada um deles contribuindo como componente essencial para a prática de enfermagem.
Reafirmando a ideia da integridade do conhecimento na enfermagem, no que respeita ao ser humano, todos os padrões são necessários e interactuam, sobressaindo mais um do que outro, em alguns momentos, porém sempre presentes.
A natureza do cuidar (ontologia) e o seu conhecimento (epistemologia) tem sido alvo de interesse e as pesquisas têm incluído os aspectos éticos, estéticos e pessoais, além do empírico. O cuidar é visto como unificador e integrador dos vários padrões do conhecimento (Waldow, 1998).
O VALOR DA EXPERIÊNCIA
Quanto aos padrões de conhecimento na enfermagem, os componentes estético, ético e pessoal têm em comum a percepção e a intuição. Há contudo um outro elemento que surge como précondição para esses padrões de conhecimento – a experiência (Waldow, 1998).
A experiência tem sido um dos elementos enfatizados por Benner (1984): é através dela que o enfermeiro aprende a focalizar de imediato aquilo que é relevante na situação e extrair o seu significado.
Segundo esta autora, só os enfermeiros que participam na prática dos cuidados têm noção da complexidade e da perícia exigida por um determinado cuidado. Os enfermeiros serão considerados tanto melhores profissionais quanto mais próximos dos padrões de excelência definidos estiver o seu desempenho e a excelência no exercício da prática só se consegue participando dela.
Benner (1982; 1984) afirma que nunca se começa como perito e que o indivíduo passa por cinco níveis de experiência: principiante, principiante avançado, competente, proficiente e perito. Esta autora traz contribuições valiosas no que respeita ao conhecimento, principalmente ao diferenciar o conhecimento teórico – “saber o quê”, do conhecimento prático – “saber como”. A experiência na enfermagem, fornecerá a “proficiência” que para a autora é a autoridade intelectual e científica que pode ser entendida como a associação entre conhecimento teórico e da prática (Lopes e Lourenço, 1998).
Marta Rogers (1994) afirma num dos seus últimos trabalhos que a enfermagem é um sistema organizado e abstracto que usa o seu conhecimento na prática. A prática, para a autora, não é a enfermagem, mas o modo pelo qual usamos o conhecimento da enfermagem. Ora, como diz Waldow (1998), se o cuidar é a nossa prática (que se caracteriza por acções e comportamentos de cuidar) então esse é o nosso conhecimento. Este conhecimento reúne os padrões de conhecimento de Carper (1978), pois o cuidar em seu sentido autêntico é ético (Fry, 1988, 1989; Harrison,1990), é estético, pois é interactivo e desenvolve habilidades manuais, é pessoal, pois é intencional, relacional, depende de vontade, de autoconhecimento, de desprendimento, de responsabilidade, comprometimento, e é empírico, pois é viável de teorização, pode ser explicado e predito.
Nenhum dos padrões sozinho pode caracterizar o cuidar/cuidado, pois este inclui em suas acções e comportamentos, além do espírito científico, a emoção, a sensibilidade, a destreza e a habilidade.
O processo de cuidar pode ser entendido como um conjunto de acções e comportamentos realizados no sentido de favorecer, manter ou melhorar a condição humana no processo de viver ou morrer. Neste sentido, o processo de cuidar é um processo interactivo, de desenvolvimento, de crescimento, que se dá de forma contínua ou em um determinado momento, mas que tem o poder de conduzir à transformação (Waldow, 1998).
O cuidar é considerado como uma forma de ser, como uma forma de se relacionar, como um imperativo moral (Watson, 1988) e constitui a essência de enfermagem, como nos dizem Leininger (1991) e Swanson (1991).
O cuidar é contextual, relacional, existencial e, dessa forma, é construído entre o ser que cuida e o ser que é cuidado. O foco no cuidado em nenhuma hipótese rejeita alguns aspectos da ciência, apenas pretende desmistificar o facto de que o que contém emoção, sensibilidade e intuição não é conhecimento.
Sendo a enfermagem uma profissão em que as pessoas (enfermeiros) prestam cuidados a outras pessoas, é importante a qualidade da relação interpessoal e intencional entre o enfermeiro e o utente, inerente ao acto de cuidar.
Watson (1985) relaciona intimamente o processo do cuidar humano (human care) com um processo de interacção entre seres humanos, sendo o cuidar humano a dimensão da prática profissional. É esta relação interpessoal que a autora chama da essência dos cuidados de enfermagem. O acessório dos cuidadosde enfermagem são o conjunto das técnicas, dos protocolos, das formas de organização utilizadas pelas enfermeiras, ou seja aquilo que serve de suporte à sua actividade.
Cuidar é o ideal moral da enfermagem cujo fim é a protecção, a promoção e a preservação da dignidade humana. Este ideal moral do cuidar em enfermagem sendo como que o seu ponto de partida é também uma atitude que tem de se tomar, um desejo, uma intenção, um compromisso que se manifesta em actos concretos – actos de cuidar.
BIBLIOGRAFIA
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WATSON, Jean (1988) – Nursing: human science and human care. A theory of nursing. New York: National League for Nursing.
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