Saúde e bem-estar

Dor e cancro

Dr. António Fontelonga – Internista, Oncologista e Hematologia – 01-Ago-2002

A dor é um dos sintomas mais frequentemente experimentados e temidos pelos doentes com cancro (doença oncológica). Os doentes com uma doença oncológica em fase inicial, localizada, experimentam dor significativa em 10 a 15% dos casos. Com o desenvolvimento de metástases, a incidência aumenta para 25 a 30% e, em doenças muito avançadas, 60 a 90% dos doentes têm dor significativa.
O objectivo da terapêutica analgésica na população oncológica é optimizar a analgesia com o mínimo de efeitos laterais e inconvenientes. As técnicas actualmente disponíveis providenciam analgesia eficaz à vasta maioria dos doentes (96%). A maioria dos doentes irá necessitar de terapêutica analgésica regular e as necessidades analgésicas mudam frequentemente, à medida que a doença progride.

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Causas da dor

A dor no doente oncológico pode ter diversas origens:
– invasão ou compressão pelo tumor de outros tecidos;
– cirurgias ou biopsias;
– lesão dos tecidos pela radioterapia;
– lesão de nervos pela radioterapia ou quimioterapia;
– isquemia;
– inflamação;
– lesão de órgãos;
– artropatias, imobilização (dor músculo-esquelética);
– fracturas patológicas.

 

Alguns tipos de dor coincidem com alguns eventos, como a cirurgia; outras ocorrem depois do evento causador e vão-se agravando com o tempo (como a dor causada por lesão de nervos pela quimioterapia). Diversos tipos de dor podem ocorrer no mesmo doente e a terapêutica geralmente é dirigida à origem da dor.

 

Avaliação da dor

Antes de se formular um plano terapêutico, deve haver uma avaliação clínica rigorosa do doente, que simplificadamente inclui:

 

História clínica – Revisão dos antecedentes médicos e cirúrgicos do doente, com cronologia da doença actual, para colocar a dor em contexto. Deve ser avaliada também a resposta da dor a terapêuticas já instituídas e as suas implicações (físicas, psicológicas, familiares, profissionais e financeiras);

 

Exame físico – Este deve incluir um exame neurológico, devido à alta prevalência de dor neuropática (dor que surge após lesão nervosa) nesta população. O objectivo é tentar averiguar a etiologia da dor e clarificar a extensão da doença subjacente;

 

Revisão de investigações prévias – Os exames laboratoriais e de imagem prévios podem fornecer informação importante sobre a doença subjacente;

 

Investigações adicionais – Necessárias para clarificar dúvidas que possam persistir, devem ser apropriadas ao estado geral do doente e aos objectivos gerais do tratamento.

 

A eficácia do tratamento analgésico depende da avaliação correcta da natureza e origem da dor. Como a dor pode variar ao longo do tempo (com a progressão da doença, novos problemas de saúde, tratamentos da doença em si), ela deve ser avaliada regularmente.
Uma parte importante da avaliação da dor é feita baseada na informação fornecida pelo próprio doente, já que a dor é uma experiência subjectiva.

 

A intensidade da dor pode ser medida numa escala de 0 a 10 (em que 0 é não ter dor e 10 a pior dor imaginável). As escalas podem ser verbais ou escritas, podem usar cores, números, linhas ou faces. De um modo ainda mais simples, a dor pode ser classificada como ligeira, moderada ou forte/intensa.

 

Tratamento da dor

A maioria dos doentes irá necessitar de intervenção farmacológica com analgesia regular e analgésicos adjuvantes. Os analgésicos têm acção sobre a dor ao actuarem sobre os mecanismos fisiológicos da dor; os fármacos adjuvantes têm indicação primária para outras condições que não a dor, mas que podem ser analgésicos em condições dolorosas em que possam modificar o processo subjacente.

 

Tratamento primário da neoplasia

O tratamento da doença de base com cirurgia, radioterapia ou quimioterapia é também, frequentemente, o tratamento eficaz para a dor oncológica. Os fármacos ou outras terapias para a dor são utilizados durante o processo, sendo retirados numa fase posterior quando deixam de ser necessários.

 

Farmacoterapia

A Organização Mundial de Saúde (OMS) desenvolveu um algoritmo com o objectivo de sistematizar o tratamento da dor oncológica, algoritmo esse que é composto por 3 degraus (e, por isso, chamado de “escada analgésica da OMS”):

 

De grau 1 – Em doentes com dor ligeira, começar com fármacos analgésicos não opióides. Ex: anti-inflamatórios (Ibuprofeno, aspirina), paracetamol. Estes fármacos apresentam habitualmente tecto analgésico, isto é, a partir de uma determinada dose, não há maior efeito analgésico;

 

De grau 2 – Para dor ligeira a moderada, começar com opióides minor, com ou sem analgésicos não opióides. Ex: tramadol, codeína. As doses máximas destes fármacos são habitualmente definidas pelos efeitos laterais que o doente consegue tolerar;

 

De grau 3 – Para dor intensa, usar opióides major, com ou sem analgésicos não opióides. Ex: morfina, fentanil.

 

Em qualquer um destes passos podem ser acrescentados fármacos adjuvantes. Falaremos destes fármacos mais à frente.

 

Tem sido discutida a possibilidade de se acrescentar um quarto degrau ao algoritmo, para incluir os chamados “tratamentos invasivos” (ex: epidural, bombas infusoras implantadas, neuroestimuladores medulares).

 

Existem algumas recomendações da OMS relativamente à terapêutica com opióides fortes, que podem ser resumidas em 2 pontos:

 

By-the- mouth – Preferencialmente, os fármacos devem ser administrados pela via que, de uma forma menos invasiva e mais segura, é capaz de fornecer analgesia eficaz. A via oral é a preferida, por rotina.
Para certos doentes, como aqueles que não conseguem engolir ou têm alterações intestinais, com efeitos laterais associados à via oral, por exemplo, podem ser necessárias vias alternativas.
As vias alternativas podem ser não invasivas ou invasivas. As vias não invasivas incluem a via rectal, a transdérmica, a sublingual e a transmucosa.
As vias invasivas, como último recurso, incluem a via endovenosa, a intramuscular ou subcutânea. As injecções intramusculares repetidas são uma prática comum, mas são dolorosas e não têm grandes vantagens relativamente a outras vias, pelo que não são recomendadas.
Existe a opção de analgesia controlada pelo doente (PCA – Patient Controlled Analgesia), em que lhe é fornecido um aparelho que permite a auto-administração de doses suplementares de fármaco analgésico, conforme o próprio doente achar que necessita. Esta é uma técnica flexível e pode ser usada em infusão contínua, injecções intermitentes ou uma combinação das duas.
As chamadas “técnicas invasivas” para tratamento da dor incluem a administração epidural ou intratecal de opióides. Estas técnicas são benéficas para doentes que necessitam de altas doses de opióides, especialmente quando os efeitos laterais são importantes, já que as doses usadas por estas vias são muito menores.

 

By-the-clock – Doentes com dor contínua ou frequente geralmente beneficiam de uma administração de fármacos a horas certas, que forneça alívio contínuo ao prevenir a recorrência da dor.
No entanto, todos os doentes devem ter sempre a chamada “medicação de resgate”, isto é, doses suplementares para tratar uma dor que possa surgir mesmo com o tratamento regular (dor irruptiva).

Efeitos laterais

Os opióides têm alguns efeitos laterais reconhecidos, que incluem a depressão respiratória, náuseas, obstipação, sedação, euforia/ disforia e prurido. Os aumentos progressivos e lentos à medida que a dor vai aumentando evitam geralmente a maior parte dos efeitos laterais (incluindo a depressão respiratória, que raramente é um problema num doente com dor oncológica).
Apenas dois efeitos laterais se mantêm sempre clinicamente importantes: a obstipação (geralmente evitada com o recurso sistemático a laxantes) e a sedação (evitada com fármacos estimulantes ou com a adição de fármacos adjuvantes para tentar reduzir a dose de opióides).

 

Fármacos adjuvantes

Como já referido, estes medicamentos geralmente têm outras indicações que não o tratamento da dor, mas são analgésicos nalgumas condições. Estes fármacos podem ser combinados com os analgésicos principais em qualquer um dos 3 degraus da escada analgésica da OMS, para melhorar o tratamento de doentes em que não se consegue um equilíbrio adequado entre alívio da dor e efeitos laterais.

 

São utilizados com esse objectivo diversos fármacos, entre os quais:

 

Corticosteróides – Dos mais utilizados com este objectivo, têm efeito analgésico em diferentes situações, melhoram a qualidade de vida e têm efeitos benéficos no apetite, náuseas, disposição e mal-estar na população oncológica. Apesar dos seus efeitos benéficos, deve ser levado em conta que estes fármacos têm efeitos potencialmente graves e que estes aumentam com o uso prolongado;
Anestésicos locais – Podem ser usados para tratamento de lesões cutâneas e das mucosas dolorosas;
Benzodiazepinas – Podem ser importantes nos casos de dor associada a espasmos musculares e ansiedade;
Antidepressivos – Geralmente usados para o tratamento da dor neuropática. A eficácia analgésica está mais demonstrada para os antidepressivos tricíclicos (ex: amitriptilina); os inibidores de recaptação da serotonina e outros antidepressivos têm menor suporte teórico para o seu uso nesta indicação. Devido aos seus efeitos laterais, estes fármacos são geralmente usados com doses iniciais baixas e titulações lentas até à dose terapêutica;
Anticonvulsivantes – Tal como os antidepressivos, são também usados para o tratamento da dor neuropática, com dose inicial baixa e titulação lenta. Ex: Gabapentina, Pregabalina.

 

Terapêuticas não farmacológicas

Muitas destas terapias são usadas empiricamente e, com frequência, não foram sujeitas a testes clínicos rigorosos.

 

Relaxamento – Os doentes oncológicos frequentemente sentem ansiedade, tensão, raiva e agitação. As terapias de relaxamento, que incluem a aromaterapia e a musicoterapia, podem ser importantes para quebrar o ciclo de aumento de dor que pode estar relacionado com estas emoções.

 

Massagem e acupunctura – A massagem local, o calor e o frio são métodos bastante utilizados para alívio de dor em locais específicos; a acupunctura, feita por alguém com experiência, tem o seu lugar.

 

TENS (Estimulação Nervosa Eléctrica Transcutânea) – Especialmente útil na dor com componente neuropática, utiliza um aparelho portátil que permite ao doente participar activamente no controlo da sua dor.

 

Conclusão

O impacto negativo que a dor oncológica tem na vida do doente não pode ser subestimado. O objectivo da terapêutica analgésica é aliviar a dor com o mínimo de efeitos laterais. Com as técnicas actuais, na grande maioria dos doentes esse objectivo é conseguido, geralmente com recurso a uma equipa multidisciplinar que consiga abordar a dor nos seus múltiplos componentes.

 

Bibliografia

 

Cherny NI, Portenoy RK. Pratical issues in the management of cancer pain. In: Wall and Melzack Textbook of Pain, 4th ed. Churchill Livingstone, p1479-1522.
Mantyh PW. Clinical states:cancer pain . In: Wall and Melzack Textbook of Pain, 5th ed. Churchill Livingstone, p1085-1166.
Norton JA, Edwards AD. Pain in adults with cancer. In: Ballantyne J, Fishman SM, Abdi S (Ed), The Massachusets General Hospital Handbook of Pain Management, 2nd ed. McGraw Hill, NY, P472-490.
WHO. Cancer Pain Relief. WHO, 2nd ed, Geneva, 1996.

 

 

Artigo de:

Dr. António Fontelonga – Internista, Oncologista e Hematologia – 01-Ago-2002

Revisto por:

Dra. Anabela Pimenta – 04-Mai-2002

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