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Para a História da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários

Inconformado com o sistema burocrático e funcionalizante (e mal pago para quem não estava em exclusividade) dos Cuidados de Saúde Primários criei no início de 1998 a AMPF- Associação de Médicos de Família Independentes que representava os Médicos de Familia com actividade privada.

A APMF enviou a proposta abaixo à então Ministra de Saúde Drª Maria de Belém com um pedido de audiência.

A Direcção da APMF foi rapidadamente recebida pela Drª Maria de Belém que nos disse que tinha recebido e lido a nossa proposta e estava de acordo com ela. E que era mesmo para avançar rapidamente, ficando a sua Chefe de Gabinete encarregue de fazer o assunto avançar.

No seguimento entregámos uma elaborada proposta de acordo entre o Ministério da Saúde e os médicos de família Independentes que permitia a um médico de família (MF) privado requisitar exames complementares de diagnóstico comparticipados pelo SNS (como já o eram as receitas de medicamentos – estas aliás na sequência de uma proposta minha em nome de uma associação anterior, APMP – Associação Portuguesa de Medicna Privada- que foi inicialmente recusada pelo Dr. Paulo Mendo que, contudo, mais tarde a viria a implementar) os certificados de Incapacidade Temporária para o Trabalho (baixas) aos utentes que optassem por ter um MF privado em vez de um MF no sistema público, aliviando assim a pressão existente da falta de médicos de família no SNS.

Contudo a Chefe de Gabinete da Senhora Ministra transferiu-se para outro lugar e do Ministério nunca mais vieram notícias pelo que, ao fim de um ano, encerrámos o processo.

A meu ver a elite dos MFs próximos do governo e defensores de um SNS 100% público não terá gostado da nossa proposta que iria pôr pressão comparativa ao modelo público mas, em contrapartida, terá percebido a necessidade de abrir o Sistema, embora sem perder a sua natureza pública. E assim apareceu em 1999 a proposta experimental de unidades em regime remuneratório experimental que concedia autonomia aos profissionais e uma remuneração ligada ao número ponderado de utentes e ao desempenho em algumas áreas.

Confesso que quando foi publicado o diploma corri a candidatar-me. Por quatro razões: porque me permitia aumentar substancialmente a remuneração, o que era importante para quem estava num regime de 35 horas simples, porque me garantia a autonomia e gerir a minha relação com os meus utentes, porque me iria permitir provar que os utentes podiam ser bem atendidos, sem esperas, e sem filas de madrugada à porta da unidade e porque tinha a consciência de que só haveria lugar para as primeiras candidaturas. E de facto só 19 se concretizaram enquanto cem já não conseguiram, tendo ficado os seus processos parados nas gavetas das ARS, como nos diz Vitor Ramos no documento MGF2030.

Em 2005-2006, foi possível continuar o percurso iniciado aproveitando a mudança de Governo e, novamente, o apoio do ministro António Correia de Campos. Foi constituída a Missão para os Cuidados de Saúde Primários (MCSP), a qual foi liderada pelo então Presidente da APMCG Luís Pisco. Foi dado um grande impulso às unidades de saúde familiar (USF).  Nessa altura, encontraram-se paradas nas gavetas dos 18 serviços sub-regionais das cinco ARS cerca de 100 candidaturas a grupos RRE. A ativação destas candidaturas como USF permitiu atingir um ponto de não retorno com entrada em atividade de mais de uma centena destas unidades.

E de facto foi com os RREs que a revolução dos CSPs começou,  depois de uma experiência sem grande sucesso, os projectos Alfa, que tinham a componente de autonomia mas não tinham a componente remuneratória e por isso tiveram uma adesão pequena.

E, como diz Vítor Ramos, as 100 candidaturas a RRE existentes serviram de massa crítica para o arranque da Reforma. Convém contudo notar que os Médicos atraídos para a candidatura ao RRE foram aqueles que estavam em 35 horas simples (mal remuneradas) que acumulavam com actividade privada de que resultou trazerem para os RREs, e depois para as primeiras USFs, uma cultura de actividade privada em autonomia e centrada na satisfação dos clientes rompendo assim com uma cultura burocrática, centrada no sistema e não nos utilizadores.

Dia 1 de Fevereiro de 2000 nasceu a Unidade de Saúde Familiar Rodrigues Miguéis- RRE que com os outros 18 RREs começou a revolução nos CSPs.

Confesso que sinto muito orgulho nos 10 anos que coordenei a USF Rodrigues Miguéis. Primeiro pela mudança de paradigma que criámos, desde o primeiro dia, no atendimento personalizado dos utentes, garantido consultas programadas em 5 dias úteis (o que durou durante os 10 anos em que fui coordenador)  e todas as situações agudas no próprio dia, por marcação telefónica. É da confiança que conquistámos que resulta que nunca houve, nestes 20 anos, utentes à porta antes da Unidade abrir para conseguir “uma vaga do dia”. Esta cultura, antes do mais assumida pelo Secretariado Clínico, e devida aos profissionais e aos seus lideres, é, ainda hoje, a imagem de marca da nossa Unidade.

Aliás patente num inquérito de Satisfação realizado pela empresa de estudos de mercado Nilsen por encomenda da ARSLVT, comparando as várias USFs de Modelo B da ARSLVT e as sedes dos centros de saúde tradicionais,  em que ficámos à frente em todos os itens , excepto no das instalações que eram miseráveis, e na sua grande maioria a nível da excelência com uma pontuação sempre de mais de 4,5 em 5 possíveis.

E segundo porque foi da análise positiva do desempenho dos 19 RREs em comparação com unidades tradicionais do mesmo centro de saúde que saiu a luz verde para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários.

Em terceiro porque sendo o único RRE em Lisboa a nossa unidade serviu de montra ao que era uma USF e tivemos a visita de todas as televisões e rádios, que, aliás, nas suas reportagens só encontraram utentes satisfeitos.

Mas voltemos ao início do século.

A APMF enviou antes das eleições de 2002 uma carta aos dirigentes dos vários partidos pedindo a possibilidade dos MFs  Privados poderem passar exames complementares pelos SNS e baixas da segurança social aos seus doentes. Teve uma única resposta, do dr. Durão Barroso (anexo) , aliás muito positiva. Contudo a sua saída prematura do Governo não permitiu que aquela promessa se concretizasse, restando a dúvida se o iria ser ou não.

Com as candidaturas ao RRE bloqueadas (apesar de todas as juras em contrário) o Sindicato Independente dos Médicos em conjunto com a Associação Portuguesa de Clínica Geral (agora denominada Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar), para romperem com o asfixiante modelo burocrático, lançaram a ideia de Cooperativas Médicas.  O que aliás vinha ao encontro daquilo que eu sempre tinha defendido que eram unidades dos profissionais convencionadas com o SNS e cuja proposta consta num livro que publiquei em em 2002 e que consubstancia as minhas propostas feitas no Grupo de Estudos da Saúde do PSD (2000-2002) . No início do seu mandato como Ministro da Saúde do Governo de Durão Barroso apresentei ao Dr. Luís Filipe Pereira uma proposta estruturada de USF privadas convencionadas com o SNS (e que corresponderiam hoje às USFs de Modelo C contempladas na Reforma dos CSP de Correia de Campos mas nunca implementadas nem sequer regulamentadas) e com um modelo remuneratório muito semelhante ao que viria a ser implementado no Modelo B das USFs. Admitiu a hipótese “será possível começando com algumas e depois alastrando em mancha de óleo”. Ficou de pensar no assunto mas dias depois, precisamente num simpósio promovido pelo SIM sobre cooperativas médicas, onde estava toda a elite pensante e representativa da MGF,  apresentou o seu programa para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários e, mal aconselhado,  cometeu o “crime” de em toda a sua intervenção não referir uma única vez  as palavras “Medico de Família” ou “Medicina Geral e Familiar”. Usou sempre a expressão Médico Assistente, que era uma expressão usada na altura no sistema privado pelas seguradoras e referindo-se a Médicos Especialistas de Medicina Interna, ou indiferenciados, e não a especialistas de Medicina Geral e Familiar (Médicos de Família). Com isto conquistou de imediato a hostilidade e desconfiança de todos os Médicos de Família, parecendo dar razão aos que previam a solução dos utentes sem Médicos de Família com o recurso a médicos não especialistas (chamados de indiferenciados). Seguiu-se uma greve de 3 dias e uma edição de luto histórica do Jornal Médico de Família que tinha na capa um poema meu.

Quando a dor sufoca a alma

refugio-me na poesia

e hoje é dia

dia em que foi decretado defunto o Médico de Família.

Eu, Médico de Família, fui decretado defunto.

Ah! mas eu, decretado defunto, vou lutar

porque lutando, eu, ainda que miserável decretado defunto,

vivo

e uma intervenção difícil, mas corajosa,  do Ministro no Encontro Nacional da APMCG , com a plateia (centenas de médicos de Família) voltada de costas, a lançar as bases para um entendimento com os Sindicatos e AMPCG que veio dar frutos como a avaliação dos RREs (que se veio a revelar muito positiva)  e um grupo de trabalho para preparar as bases do futuro. Grupo de Trabalho que seria retomado por Correia de Campos no Governo seguinte e que depois se institucionalizou como Missão dos Cuidados de Saúde Primários que preparou a Reforma. Acompanhei os seus trabalhos de perto porque um dos membros da minha USF (o Professor Armando Brito de Sá) foi um dos “Missionários” .

Não posso deixar de salientar o trabalho de bastidores para encontrar uma saída para crise de 2002 desempenhado pelo assessor do Ministro da Saúde, Dr. António Mocho. E a sua enorme capacidade de pôr as questões e irritações pessoais de lado e se concentrar em ouvir e recolher propostas dos vários lados, entre as quais as minhas, para se encontrar uma solução, apaziguando assim o conflito.

E assim chegamos à  Reforma dos Cuidados de Saúde Primários com a publicação do DL  298/2007 que continha a proposta da MCSP.

Esta proposta assenta em Unidades com Médicos de Família, Enfermeiros e Secretários Clínicos, com plena autonomia e prevê três modelos :O Modelo A em que o sistema de remuneração tradicional se mantém (pensado sobretudo para atrair os muitos médicos que estavam, bem pagos, em 42 h com exclusividade, com 1550 utentes,  e que desconfiavam do Modelo B em que teriam uma base remuneratória mais baixa e teriam que aumentar o número de utentes). O Modelo B assente na base 1550 utentes/35 h a que acresce uma série de suplementos,  quer pelo aumento ponderado das listas,  quer por qualidade e desempenho. Num dos próximos números irei publicar um artigo que escrevi na altura em que foram conhecidas as linhas do Modelo B em que felicitava os colegas dos sindicatos e da APMCG por terem conseguido muito mais do que aquilo que pensava ser possível alcançar e que me pediram para não publicar… E o Modelo C em que as Unidades seriam dos profissionais e convencionadas com o SNS.

A ideia na altura é que haveria plena liberdade de se escolher o modelo que se quisesse inclusive o Modelo C. Só que (em face da generosidade do modelo B)  rapidamente alguém inventou que para se chegar ao Modelo B era preciso primeiro estagiar em Modelo A até se dar provas da “consistência e amadurecimento da Equipa”. Depois o Ministério teria que publicar todos os anos quantas Unidades A poderiam passar para B (e isto não estava na Lei)  sendo que esse número foi sendo cada vez mais restrito e atualmente é inferior ao número de USFs do Modelo A já aprovadas para passarem para B, e a passagam só acontece no último trimestre do ano. Este ano ainda está dependente de uma nova avaliação do Modelo B.

O modelo C nunca chegou sequer a ser regulamentado nem sequer estabelecidas as suas linhas remuneratórias. Mais uma vez o preconceito ideológico e o medo da comparação se impuseram.

O Modelo B, que para os profissionais reúne o melhor de dois mundos (uma boa remuneração e autonomia sem encargos ou responsabilidades financeiras com investimentos e pessoal), passou assim a ser o alvo cobiçado por todos.

E para o lado dos utentes?

Seguramente que este modelo é muito melhor que o anterior, porque , à semelhança da Medicina Privada, os profissionais sentem a unidades como sendo deles e a ser a sua imagem que está em causa.

Por outro lado o Modelo USF está sujeito à contratualização de variadíssimos indicadores, cujos resultados são públicos e ninguém gosta de ficar mal na fotografia, para além de se traduzirem em suplementos remuneratório. Por sua vez o cumprimento desses indicadores obriga a um bom desempenho e a boas práticas quer na qualidade, quer na eficiência, quer nos resultados.

No entanto pelo lado dos utentes/contribuintes este modelo tão generoso para os profissionais (onde sem alterar as leis se conseguiu pôr todos os benefícios remuneratórios possíveis – pagamento do subsídio de exclusividade embora sem a ela obrigar, Unidades de Contratualização [UC] pelo aumento da listas acima de 1550 utentes que correspondem ao pagamento de uma hora suplementar, por cada mais 55 utentes tipo, UCs pelo seguimento realizado de hipertensos, diabéticos, mulheres em planeamento familiar, grávidas e crianças, até um total de 20 UCs , pagamento de 30 euros por domicílio, pagamento por se ser orientador de formação dos internos de MGF, pagamento de 5 UCs ao Coordenar da USF) falha ao não exigir duas contrapartidas fundamentais : Alargamento do horário base de 35 horas tendo em conta as horas suplementares pagas (UCs de lista) pelo alargamento da lista de utentes e uma exigência de uma acessibilidade diferente do modelo tradicional que é de 3 semanas, sendo que no modelo tradicional os médicos atendem também utentes sem médico de família atribuído e colaboram (gastam horas) nos Atendimentos Complementares dos ACES. E é exactamente por estas duas falhas que o Modelo B ainda não se afirmou e levanta dúvidas, designadamente ao Tribunal de Contas, sendo cada mais difícil o acesso a este modelo. Isto está a gerar uma situação de injustiça insuportável pois, enquanto existem USFs do Modelo A com desempenho excelente, mas que não conseguem o acesso ao Modelo B e os seus profissionais estão no regime geral da carreira medica a fazer 40 horas por semana com o mesmo número de utentes dos colegas que estão no Modelo B a receberem o dobro e a fazerem apenas 35 h (na sua larga maioria, conforme o revelaram as auditorias feitas no ano passado)  e a cumprirem o mesmo Tempo Máximo de Resposta Garantida de 3 semanas.

Cumprissem os Modelos B um regime de 40 horas e um TMRG de 5 dias úteis e seria politicamente impossível evitar a generalização do Modelo B, com grande vantagem para população.

Note-se que a manutenção de horários de 35 h no Modelo B de Médicos e Enfermeiros a receberem 9 UC de lista, se deve à passividade calculista da Administração que todos os anos tem validado os horários de 35 horas aprovados pelos Conselhos Gerais das USF e à cobardia dos políticos.

Pôr o modelo B no são deve ser a luta de todos os que o querem ver generalizado.

Abrir o Modelo C é outra luta a fazer por duas razões importantes: nos próximos 4 anos vão reformar-se 3000 médicos de família e o número de novos MFs não chega para os substituir. As USF do Modelo C são uma forma de manter no sistema parte destes MF que se vão agora reformar e só assim os políticos poderão cumprir a justa promessa de “dar um Médico de Família a todos os portugueses” e por outro lodo pelo estímulo que a pressão competitiva e comparativa poria no Sistema.

 

Fonte: Saúde Online

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