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Nuno Jacinto. “Passou mais de um ano e nada foi feito ao nível do reforço de profissionais nos CSP” – Saúde Online

Qual está a ser o impacto desta quarta vaga pandémica nos cuidados de saúde primários (CSP)?

O impacto desta quarta vaga é idêntico ao que foi ocorrendo ao longos destes meses de pandemia. Na realidade, os CSP nunca conseguiram recuperar totalmente, nem lá perto, do que foi o impacto da covid-19 na sua atividade.

Os médicos de família (MF) mantiveram sempre o acompanhamento aos doentes positivos ou suspeitos no “Trace Covid”, a plataforma de seguimento destes doentes. Claro que, agora, com mais casos a acontecerem, voltamos a ter mais telefonemas, mais contactos para fazer com maior regularidade após uma fase de ligeira acalmia, entre março e maio.

Continuamos a ter o atendimento nas áreas dedicadas a doentes respiratórios (ADR) que foi algo que mantivemos desde o início da pandemia e, é claro que quantos mais casos suspeitos há e mais doentes são necessários observar presencialmente, mais tempo os MF passam nos ADR e mais profissionais necessitamos de ter em simultâneo nos ADR.

Temos agora, em simultâneo, nos últimos meses, a questão da vacinação, que nos drena múltiplos recursos. Continuamos praticamente sozinhos a fazer a vacinação anticovid em todo o país, que é algo que nos custa muito perceber, mas o que é facto é que a realidade não muda… E quando temos fases em que nos pedem para acelerar este ritmo, isso significa que estamos mais horas nos centros de vacinação, temos mais médicos, mais enfermeiros, mais administrativos e se estamos lá, não estamos obviamente nas nossas unidades.

 

Tudo isso tem resultado num enorme comprometimento da atividade programada nas unidades de CSP e do acesso dos doentes crónicos às consultas, não é assim?

Com tudo isto, há coisas que nunca voltaram ao ritmo normal e outras que continuam a ficar para trás. Falo da vigilância de grupos vulneráveis, de grávidas, de crianças nos primeiros anos de vida, falo de vigilância de doentes crónicos, como diabéticos, hipertensos e doentes respiratórios… E falo dos rastreios.

Pensar-se que pode haver algum tipo de retoma ou de recuperação da atividade, quando as tarefas continuam a ser colocadas em cima dos MF e nunca são aliviadas – apenas são acrescentadas – torna tudo muito difícil.

Ao entrarmos num novo período de aumento de casos de covid-19, o que se passa – e bem – é que continuam a ser os CSP a fazerem o seguimento destes doentes, mas com os mesmos profissionais de sempre, sem reforço de recursos, é muito complicado. Continuarmos com os mesmos profissionais que estão nas unidades a ter de fazer tudo isto é muito complicado. Os MF vão levando impacto atrás de impacto, tentando não cair, mas fica cada vez mais difícil aguentarmo-nos de pé.

 

As equipas estão cansadas e já se equaciona, novamente, “sacrifício” de férias…

Isso é algo que, para nós, é totalmente inadmissível. É certo que no início da pandemia ninguém estava preparado e houve um grande esforço de adaptação. Mas, passou mais de um ano e, ao longo deste período de tempo, toda a gente alertou para o facto de serem precisos mais recursos nos centros de saúde (CS). E a realidade é que não só não temos mais recursos como temos menos! Isto porque há profissionais que estão de baixa, outros que se reformaram, e ainda há os que decidiram abandonar o Serviço Nacional de Saúde (SNS), por estarem exaustos ou descontentes com as condições de trabalho.

Nada aconteceu, não vimos reforço nenhum. Nunca vimos, ou só pontualmente, equipas específicas a serem alocadas para todas estas tarefas de que falava. Para a vacinação, inexplicavelmente, continuamos sozinhos. Aparentemente, é uma tarefa que só pode ou só deve ser desempenhada pelos CSP. É no mínimo estranho entender-se que não há outros médicos e enfermeiros aptos para esta tarefa…

Agora pedem-nos com a máxima urgência para vacinarmos utentes em lares onde ocorreram surtos há alguns meses e que já têm critérios de vacinação. Pedem-nos para fazer isto com a máxima urgência. O que nós perguntamos é: A urgência pode ser máxima, mas com que pessoas vamos fazê-lo? Deixamos de vacinar nos centros de vacinação? Não, também não podemos, porque também é urgente vacinar a população. Então paramos a atividade assistencial nos CSP? Não, também não podem parar. Então, digam-nos como é que isto se faz!

 

É a história do lençol, puxa-se de um lado, destapa do outro…

Mas, é preciso perceber que o lençol é curto e aparentemente continuamos a olhar para o lado e a achar que temos vinte lençóis. Mas, infelizmente, não temos.

 

Além desse reforço de recursos humanos, que já tem vindo a ser reivindicado pela AMPGF mesmo antes desta pandemia, que outras medidas são necessárias para essa retoma ao nível dos CSP?

Assumindo que tínhamos recursos humanos em quantidade suficiente para fazer tudo aquilo que nos é pedido – nomeadamente no atual contexto pandémico – continuam a faltar, nos CSP, todas as outras condições que também já sabíamos que estavam em falta e cuja necessidade a pandemia ainda veio exacerbar mais.

Basta pensar nas infraestruturas de muitas unidades que continuam a funcionar em locais totalmente inadequados, por vezes há décadas, em edifícios que foram concebidos inicialmente para habitação e que, hoje em dia, continuam a servir para unidades prestadoras de cuidados de saúde, com todas as limitações de acesso e de espaço.

Igualmente em falta, em algumas unidades, está equipamento básico como esfigmomanómetros ou autoscópios, e outros essenciais à nossa atividade clínica.

Outro ponto importante tem que ver com a vertente tecnológica das unidades – com os sistemas de informação, redes, computadores que funcionem, impressoras que imprimam, telefones que estejam ligados e a funcionar… Quando falamos de acompanhamento telefónico e às vezes a solução é dar um telemóvel para uma unidade, é óbvio que é escasso e é claro que os doentes vão continuar a queixar-se que não conseguem ligar para as unidades. Além de os profissionais estarem ocupados com múltiplas outras tarefas, mesmo quando eventualmente até há um profissional para atender, o telefone não toca ou toca e dá sinal de impedido ou não há duas linhas em simultâneo.

Outro aspeto que tem sido muito falado é o da teleconsulta/telemedicina, que tem o seu papel – nomeadamente no contexto que atravessamos –, mas que não substitui a nossa consulta presencial. E aqui voltamos à questão da tecnologia, e do equipamento essencial para fazer consulta remota. Numa unidade onde só existe um computador com coluna e câmaras, não faz muito sentido pensarmos que vamos conseguir fazer teleconsultas. E relembro que telemedicina não é só fazer um telefonema, não é mandar um e-mail

Portanto, falta-nos muita coisa. Já faltava antes. Obviamente que os MF percebem que há prioridades em tempo de pandemia, mas já estamos nisto há mais de um ano e se continuamos a insistir na solução de resolver um problema criando outro ou aprofundando ainda mais outro. O resultado, quando ultrapassarmos esta pandemia, vai ser muito negro, quando olharmos para os cuidados primários e virmos o que sobrou daquilo que em tempo já tivemos.

 

Outra realidade que se agravou foi a do número de utentes sem MF atribuído. Os números mais recentes encontram explicação só na pandemia?

Uma parte desse aumento do número de utentes sem MF atribuído tem que ver com a covid, mas também se deve ao número de profissionais que foram saindo e que não foram substituídos, muitos deles deles pelo tal descontentamento, cansaço, burnout, pela exaustão em que entram.

Deve-se também a outros dois fatores que já conhecíamos ou que eram previsíveis. Um deles tem que ver com o pico de reformas de MF que começou no ano passado e se prolonga por 2021 e por 2022. Esta situação prevista há décadas e prende-se com a formação médica em Portugal ao longo dos anos e como foram geridos os recursos nos CSP. Portanto, já toda a gente previa que, nesta altura, iria haver um pico de reformas que não seria compensado pelo número de especialistas que vamos formando e porquê? Porque estes novos especialistas não ficam todos no SNS.

Quando se ouvem sucessivos ministros da saúde – não é exclusivo da atual ministra – dizer que “vamos abrir x vagas para MF” e dizer que, com isso, vamos resolver a situação a n centenas de milhares de portugueses, é uma ilusão, porque, habitualmente, 20 a 30% dessas vagas, pelo menos, não são ocupadas. E porquê? Porque são completamente desconexas do local onde os colegas fizeram a sua formação, e isso nunca é tido em conta. A maior falta de MF regista-se na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde, neste momento, com o que existe ao nível do sistema privado de saúde, há uma captação grande de colegas para o privado, onde as condições de trabalho são mais atrativas e não falo apenas em termos de remuneração.

Por todos este conjunto de motivos – pandemia, dificuldade em manter os recém-especialistas e pico de reformas dos MF – há cada vez um maior número de utentes sem MF atribuído. A senhora ministra também refere – e bem! – que houve uma maior procura de inscrição de utentes durante a pandemia. É verdade, mas não justifica, nem de perto, nem de longe, o mais de um milhão de portugueses que temos sem MF e se nos focarmos apenas nisso estamos claramente a olhar só para a árvore e a esquecer a floresta.

 

Por todas essas razões, cai também por terra uma outra reivindicação de longa data da APMGF: o ajuste das listas de utentes por MF?

Essa é outra questão que muito desmotiva os profissionais que estão no terreno. Neste momento, é difícil ajustar as listas de utentes. Mas, é sempre difícil… A questão é que se nunca o fizermos, vamos ter cada vez mais profissionais exaustos, cada vez mais profissionais desiludidos e que vão abandonando o SNS ou porque se reformam ou porque têm outras opções ou porque optam por horários de trabalho parciais.

A dimensão das listas de utentes é uma questão absolutamente fulcral para podermos ter uma atividade de qualidade e em segurança, para que possamos prestar os cuidados que os doentes necessitam, quando eles necessitam.

Porém, se continuamos com listas de dois mil utentes, completamente desligadas da realidade e das boas práticas e se nos dizem “agora que temos mais utentes sem médico, nem pensar em ajustar listas”, vamos estar sempre neste círculo vicioso. Se não ajustarmos as listas, vamos ter um problema a perpetuar-se e unidades a ficarem cada vez mais deficitárias em termos de recursos humanos. Enquanto não se olhar para esta questão a médio/longo prazo e continuarmos a olhar para o imediato, para o ciclo eleitoral/político presente, o problema vai perpetuar-se e, pior, agravar-se.

 

A pandemia de covid-19 teve impacto na formação pré e pós-graduada da especialidade?

Na formação dos internos de Medicina Geral e Familiar (MGF), certamente que sim. Os nossos internos tiveram muitos dos seus estágios alterados, cancelados ou ajustados. Falamos dos estágios hospitalares, mas também dos estágios que eram realizados em grande parte nos centros de saúde.

Relembro que também os internos de MGF foram para os ADR, para os centros de vacinação e para os surtos em lares, e realço que a atividade das unidades ao longo dos últimos meses não foi, nem continua a ser a mesma. Na fase inicial da pandemia – porque ninguém sabia ainda muito bem com que vírus estávamos a lidar e foram colocadas lógicas de acesso e de circulação nas unidades muito diferentes – deixámos praticamente de ter consultas presenciais. Ora, essa realidade alterou bastante a formação dos internos.

Na fase em que estamos atualmente, a pandemia continua a ter impacto na formação dos internos de MGF, uma vez que estes acabam por ser “arrastados” para as múltiplas solicitações de que falei anteriormente. Se não forem os internos, são os orientadores, são as equipas das unidades onde estão a fazer os seus estágios e, portanto, a formação é atualmente completamente diferente.

Já para não falar que a capacidade de levarem a cabo trabalhos de investigação ou de revisão é bastante reduzida, havendo igualmente muito poucos eventos onde apresentar esses resultados. A APMGF tem feito um esforço no sentido de voltar a criar eventos e de abrir espaços formativos, mas o que é facto é que atualmente o Internato de MGF se mantém condicionado pela pandemia de covid-19.

Os MF não podem, nem querem ficar alheios a toda esta pandemia e reforço que estamos sempre dispostos a dar o nosso contributo. O que estamos sempre a dizer é que temos de ter em atenção as condições em que nos são feitas determinadas exigências e lembrar que não podemos estar sozinhos nesta batalha.

 

Teme que o pós-pandemia represente um “período negro” para os CSP?

Vão ser anos difíceis, certamente, porque depois desta tempestade toda, vamos perceber o que é que sobra. Primeiro, temos de perceber o que é que sobra de nós, das nossas estruturas, das nossas unidades, dos nossos agrupamentos de centros de saúde (ACES), que recursos teremos e o que seremos capazes de planear e organizar. Já nem falo em contratualização, nem em como este processo decorreu no ano passado, mas refiro-me apenas ao planeamento da atividade e à retoma da prestação de cuidados aos nossos utentes.

Teremos, seguramente, que correr atrás do prejuízo. Ver o que é que aconteceu aos nossos doentes crónicos que foram descompensando ao longo deste tempo. Avaliar a situação dos rastreios, porque obviamente que se há menos rastreios, teremos menos diagnóstico precoce de vários cancros e isso pode acarretar consequências futuras muito complicadas. E quem diz cancro, diz outras doenças de diagnóstico precoce cuja vigilância ao nível dos CSP é imprescindível, como algumas doenças pediátricas, nomeadamente alterações do desenvolvimento que detetadas ao um ou dois anos de idade é totalmente diferente em termos de prognóstico do que se forem diagnosticadas aos quatro ou cinco anos.

Não serão tempos fáceis e vamos ter todos que encontrar uma forma de voltar não ao que tínhamos antes, mas de voltar a uma atividade que corresponda às necessidades dos nossos utentes. Vai ser muito complicado e acredito que a APMGF terá um papel importante na definição de caminhos. Haja quem nos queira ouvir!

 

Em setembro, com a promessa/esperança numa imunidade de grupo, vão regressar à atividade formativa contínua em modelo presencial em Braga. Pergunto-lhe quais são as expetativas para o 38.º Encontro Nacional de MGF?

A expetativa, primeiro, é a de que consigamos ter, efetivamente, uma componente presencial de regresso às formações da associação. A nossa ideia é fazer esta edição do Encontro Nacional num modelo híbrido, mantendo a possibilidade de os colegas participarem e assistirem através de uma plataforma digital. Mas, gostaríamos muito, e estamos a trabalhar para isso, de ter uma componente presencial, respeitando as regras, respeitando as dimensões e a lotação dos espaços que nos permita voltar a ter aquele contacto que nos faz falta. Um contacto para troca de experiências, partilha de dificuldades, discussão… Tudo isso é importante, porque tal como faz falta o contacto entre o médico e o utente, faz também falta o contacto entre pares.

 

Foi com base nessa expetativa que escolheram o lema do evento?

Foi precisamente por isso que escolhemos como lema para o 38.º Encontro Nacional de MGF “O Reencontro”. Braga era o local onde deveria ter ocorrido o Encontro Nacional do ano passado, em março, e que foi cancelado, pelo que decidimos manter a mesma localização.

Será um momento muito bom, certamente, para todos os MF e para todos os envolvidos se conseguirmos tornar este modelo presencial numa realidade, assim a pandemia no permita. Acreditamos que com o avançar da vacinação vamos ser capazes de dar este ponto de saída a um de vários eventos que hão de vir aí, não só na área da MGF, mas também de outras especialidades médicas, que já estão a seguir o mesmo caminho e contamos estar presentes em vários eventos de sociedades congéneres previstos para o último trimestre do ano.

 

Quais são os temas em debate no Encontro Nacional que gostaria de destacar?

O Encontro, como sempre, tem um programa muito vasto. Contando com os workshops, serão quatro dias de trabalhos, com várias sessões em paralelo.

Para a componente técnico-científica, convidámos as delegações e grupos de estudo da APMGF a sugerirem temas, de modo a envolver todos os colegas. Neste âmbito, destaco a sessão sobre capacitação do doente crónico, mas também a mesa dedicada à Otorrinolaringologia, o debate sobre long covid e a discussão em torno dos cuidados ao idoso frágil”.

Na vertente socioprofissional, vamos abordar temas muito caros aos CSP e bastante candentes: contratualização, burocracias em MGF, reorganização das unidades e da atividade dos MF. Teremos ainda uma mesa-redonda dedicada à investigação, uma das bandeiras da atual direção da APMGF. Nesta altura, como dizia há pouco, é muito difícil retomar a atividade assistencial e ainda fazer investigação. É nosso objetivo não só impulsionar essa retoma, como estimular a investigação em MGF e esperamos que esta sessão possa ser um ponto de partida para o que vamos desenvolver nos próximos meses/anos.

 

Os colegas não vão querer perder este 38.º Encontro Nacional porque…

… Não vão querer perder este 38.º Encontro Nacional porque vão poder atualizar-se em áreas médicas muitíssimo importantes, vão poder partilhar experiências e dificuldades, bem como construir soluções para o futuro. Vão poder trabalhar em equipa, reencontrar caras conhecidas e conhecer novas caras e tudo isto vai fazer com que o Encontro Nacional de MGF de 2021 seja um evento de sucesso, que permita quase um reinício e que permita encarar o que nos espera nos próximos tempos de uma forma mais positiva, com outras armas e com outra capacidade de lidar com todos estes desafios.

É muito importante que os MF se voltem a reencontrar, que se voltem a juntar e que voltem a discutir, para que possamos prestar os cuidados aos doentes que todos nós desejamos e que os doentes ambicionam e merecem.

 

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Fonte: Saúde Online

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