O personagem mais famoso de Dickens poderia ser neurodivergente?

A maioria concordaria que o romance clássico de Charles Dickens, “A Christmas Carol”, oferece uma lição valiosa sobre como tratar os outros e um conto emocionante de redenção – mas Essaka Joshua, professor associado de inglês na Universidade de Notre Dame, acredita que há mais para a história.

O personagem principal do romance, Ebenezer Scrooge, é um dos personagens fictícios mais conhecidos e é frequentemente retratado. São mais de 100 adaptações, incluindo filmes, peças de teatro, programas de rádio e TV, onde o frio e mesquinho rabugento que odeia o Natal muda de ideia bem a tempo de abraçar o feriado.

Em uma nova análise de Scrooge, no entanto, Joshua oferece uma perspectiva inesperada, fazendo uma pergunta simples: e se estivéssemos errados sobre Scrooge? E se forem, de fato, os personagens que o cercam que precisam de mais empatia por seus semelhantes – especialmente se esse homem for neurodivergente?

Joshua, cuja pesquisa e ensino se concentram nos estudos da deficiência, agora está pesquisando como a leitura de “Um Conto de Natal” muda se Scrooge for visto dessa maneira.

“Não importa qual condição Scrooge pode ou não ter. Esses diagnósticos mudam com o tempo”, disse ela. “Mas o que acontece se pensarmos na falta de simpatia de Scrooge e em outras características como uma parte legítima de sua personalidade? Scrooge causa danos a si mesmo ou a outros? E sua ‘cura’ é consensual ou desejada?”

A personalidade de Scrooge é caracterizada por sua falta de compaixão, sua solidão, sua relutância em gastar dinheiro e sua frustração com a expectativa de que ele deva se conformar às normas comportamentais da sociedade. Examinar quais desses comportamentos realmente precisam ser corrigidos ajuda o leitor a entender como Dickens apresenta tipos de personalidade normativa e como o comportamento não normativo é estigmatizado, disse Joshua.

“Em alguns lugares, o texto é explicitamente desagradável sobre seu comportamento negativo, mas em outros lugares há mais ambiguidade”, disse ela. “Ele come a mesma refeição melancólica todos os dias na mesma taverna melancólica – e nós temos que juntar os pontos nessa e dizer ‘porque ele é mau’. Mas pode ser que não devêssemos inferir isso de forma alguma, e deveríamos apenas dizer ‘porque ele precisa, porque essa é a rotina dele e é disso que ele precisa’.

“E eu gosto dessa nuance, gosto das lacunas ali, porque diz ao leitor para fazer algum trabalho. O que é fascinante é que, como resultado, é um texto diferente para todos.”

Na verdade, Joshua argumenta, muitos dos comportamentos de Scrooge podem ser vistos como estratégias cognitivas e comportamentais comumente usadas por indivíduos neurodivergentes para reduzir a ansiedade, evitando interações sociais, seguindo rotinas e usando rituais de verificação para se acalmar.

Quando as coisas tomam um rumo sobrenatural, Scrooge parece mais perturbado porque os fantasmas que o visitam perturbam seu senso de expectativa – muitas vezes de maneiras triviais, ela observa. Embora o primeiro espírito a visitar Scrooge, seu falecido parceiro de negócios Jacob Marley, estabeleça um plano para as visitas dos fantasmas seguintes, eles não o seguem, chegando em salas diferentes e em horários diferentes do que Scrooge espera.

“Dickens descreve o nível de ansiedade crescendo em Scrooge porque os arranjos acabaram de ser bagunçados. E, você sabe, isso faz muito sentido para mim”, disse ela. “Na verdade, isso seria tão assustador para algumas pessoas quanto os fantasmas. Como Scrooge, o próprio Dickens teve uma infância difícil. É muito provável que seja uma escrita informada por trauma.”

A questão de saber se o comportamento não normativo é uma característica aceita da personalidade de alguém ou requer correção é importante para os estudos sobre deficiência, disse Joshua.

A neurodiversidade desafia a definição de condições como o autismo apenas como distúrbios a serem curados ou condições médicas a serem gerenciadas. Em vez disso, o autismo foi reconceituado como uma maneira diferente de ser, com suas próprias forças e vantagens, e os especialistas procuram equilibrar a necessidade de florescimento humano e o respeito pela diferença com o apoio a intervenções médicas apropriadas e consensuais.

Em “A Christmas Carol”, a questão é complicada por dois problemas éticos separados – tanto os efeitos pessoais quanto sociais das ações de Scrooge e os danos que elas podem causar a ele e aos que o rodeiam.

No cenário da Inglaterra vitoriana – com uma enorme diferença salarial entre os pobres e os ricos – sua falta de compaixão tem o potencial de causar sofrimento. No entanto, Dickens não separa esse dano social da automutilação da melancolia de Scrooge e, em vez disso, centra a trama em uma “cura” para ambos os problemas, disse Joshua.

“Acho que Dickens realmente abandona a questão da ética pessoal e se as pessoas têm o direito de expressar suas personalidades de certas maneiras e a substitui pela problema social“, disse ela. “Scrooge nunca consente ou inicia esta cura, mesmo que ele venha a acreditar que seu comportamento é melhorável e errado. Isso levanta um importante dilema bioético: Scrooge está experimentando seus traços comportamentais de forma negativa, ou ele está experimentando os efeitos do estigma social desses traços?

“A preocupação de Dickens com bem-estar social pode muito bem exceder sua preocupação sobre o valor inerente de Scrooge antes da intervenção sobrenatural.”